sexta-feira, 1 de novembro de 2013

UM DISTÚRBIO HERDADO

  • Se examinarmos mais detidamente as antigas religiões e tradições espirituais da humanidade, veremos que, por baixo de grande parte das diferenças superficiais que elas apresentam, há duas idéias centrais com as quais a maioria delas concorda. Embora as palavras usadas para explicar essas idéias sejam diversas, todas remetem a uma verdade fundamental dupla. Nesta seção, abordarei uma de suas faces - a negativa - e, na próxima, a positiva. A primeira parte, ou o aspecto ruim, dessa verdade é a compreensão de que o estado mental "normal" de quase todos os seres humanos contém um forte elemento do que podemos chamar de distúrbio, ou disfunção, e até mesmo de loucura. Determinados ensinamentos fundamentais do hinduísmo talvez sejam os que mais se aproximem da idéia de que esse desajuste é uma forma de doença mental coletiva. Eles o chamam de maya, o véu da ilusão. Ramana Maharshi, um dos maiores sábios indianos, afirma sem rodeios: "A mente é maya." 
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  •  O budismo emprega termos diferentes. De acordo com Buda, a mente humana no seu estado normal produz dukkha, termo páli que pode ser traduzido como sofrimento, insatisfação ou tristeza, entre outros. Para ele, essa é uma característica da condição humana. Não importa aonde vamos nem o que façamos, disse o mestre, encontraremos dukkha, e isso se manifestará em todas as situações, cedo ou tarde. 
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  •  De acordo com os ensinamentos cristãos, o estado coletivo normal da humanidade é de "pecado original". A palavra "pecado" tem sido incompreendida ao longo dos séculos. Traduzida de forma literal do grego antigo, idioma em que o Novo Testamento foi escrito originalmente, ela significa errar o alvo, como na situação de um arqueiro que falha em atingir ponto de mira. Assim, pecar quer dizer errar o sentido da existência humana. Corresponde a viver de maneira desorientada, cega e, portanto, sofrer e causar sofrimento. Uma vez mais, essa palavra, despojada da sua bagagem cultural e de sentidos equivocados, indica o distúrbio inerente à condição humana. 
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  • As conquistas da civilização são admiráveis e inegáveis. Criamos obras sublimes de música, literatura, pintura, arqui-tetura e escultura. Mais recentemente, a ciência e a tecnologia estabeleceram mudanças radicais na maneira como vivemos e nos capacitaram a produzir inventos que teriam sido considerados miraculosos até mesmo 200 anos atrás. Não há dúvida: a mente humana possui um altíssimo grau de inteligência. Ainda assim, essa inteligência é tingida pela loucura. A ciência e a tecnologia aumentaram o impacto destrutivo que o distúrbio da mente humana tem sobre o planeta, sobre as outras formas de vida e sobre as próprias pessoas. Por isso é na história do século XX que essa disfunção, ou essa insanidade coletiva, pode ser reconhecida com mais nitidez. Um fator adicional é que essa perturbação está de fato se intensificando e se acelerando.
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  •  A Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914. Lutas destruidoras e cruéis, motivadas por medo, cobiça e desejo de poder, são ocorrências comuns em toda a história da nossa espécie, assim como foram a escravidão, a tortura e a violência disseminada infligidas por motivos religiosos e ideológicos. Os seres humanos sofreram mais nas mãos uns dos outros do que em decorrência de desastres naturais. Em 1914, a mente humana altamente inteligente inventou não só o motor de combustão interna como também bombas, metralhadoras, submarinos, lança-chamas e gases venenosos. A inteligência a serviço da loucura! Nas trincheiras estáticas da guerra na França e na Bélgica, milhões de homens pereceram para ganhar alguns poucos quilômetros de lama. No fim do conflito, em 1918, os sobreviventes observaram horrorizados e incrédulos o saldo da devastação: 10 milhões de pessoas mortas e muitas mais mutiladas ou desfiguradas. Nunca antes a loucura humana tivera conseqüências tão devastadoras e deixara efeitos tão evidentes. Mal sabiam eles que aquilo era apenas o começo.
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  •  No fim do século XX, o número de pessoas mortas violentamente pela mão de outras chegou a mais de 100 milhões. Essas mortes foram causadas não apenas por guerras entre países, mas também pelo extermínio em massa e o genocídio, como a execução de 20 milhões de "inimigos de classe, espiões e traidores" na União Soviética, durante o governo de Stalin, e o Holocausto na Alemanha nazista, que deixou um registro de horrores indescritíveis. Além disso, muitos morreram em incontáveis conflitos mais restritos, como a guerra civil espanhola e o massacre de 1/4 da população do Camboja durante o regime do Khmer Vermelho.
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  •  Basta assistirmos ao noticiário para ver que a loucura não arrefeceu, ela continua no século XXI. Um dos aspectos do distúrbio coletivo da mente humana é a violência sem prece-dentes que estamos infligindo a outras formas de vida e ao próprio planeta - a destruição de florestas, que produzem oxigênio, e de outros seres vegetais e animais; os maustratos aplicados a animais em propriedades rurais voltadas à produção comercial; e o envenenamento de rios e oceanos e do ar. Motivados pela cobiça, ignorantes da nossa interdependência do conjunto como um todo, persistimos num comportamento que, se continuar indiscriminadamente, resultará na nossa própria destruição.
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  •  As manifestações coletivas de insanidade que se encontram na essência da condição humana constituem a maior parte da historia da nossa espécie. E, em grande medida, essa historia é de loucura. Se ela fosse o relato do caso clínico de urna única pessoa, o diagnóstico seria: ilusões paranoicas crônicas, propensão patológica para cometer assassinato e atos de extrema violência e crueldade contra "inimigos" imaginados - sua própria consciência projetada exteriormente. Uma insanidade criminosa com breves intervalos de lucidez. 
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  •  Medo, cobiça e desejo de poder são as forças motivadoras psicológicas que estão por trás não só dos conflitos armados e da violência envolvendo países, tribos, religiões e ideologias, mas também do desentendimento incessante nos relacionamentos pessoais. Elas produzem uma distorção na percepção que temos dos outros e de nós mesmos. Por meio delas, interpretamos erroneamente todas as situações, o que nos leva a adotar uma ação equivocada para nos livrarmos do medo e satisfazermos nossa necessidade interior de alcançar mais, um poço sem fundo que nunca pode ser preenchido.
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  •  É importante que você compreenda, porém, que o medo, a cobiça e o desejo de poder não são o distúrbio de que estou falando, embora sejam criados por essa disfunção, que é uma ilusão coletiva profundamente arraigada na mente de todo ser humano. Numerosos ensinamentos espirituais nos dizem para abandonar o medo e o desejo. Mas, em geral, esses métodos espirituais não atingem seu objetivo. Não chegam à verdadeira causa do distúrbio. Medo, cobiça e desejo de poder não são os fatores causais supremos. Tentar ser uma pessoa boa ou melhor parece algo recomendável e evoluído a fazer; ainda assim, não é um empreendimento que alguém consiga realizar com total sucesso, a não ser que ocorra uma mudança em sua consciência. Isso acontece como parte da mesma disfunção, uma forma mais sutil e rarefeita de destaque pessoal, do desejo por mais e do fortalecimento da identidade conceituai do indivíduo, da sua imagem. Ninguém se torna bom tentando ser bom, e sim encontrando a bondade que já existe dentro de si mesmo e permitindo que ela sobressaia. No entanto, essa qualidade só se distingue quando algo fundamental muda no estado de consciência da pessoa.
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  •  A história do comunismo, inspirado originalmente por ideais nobres, ilustra com clareza o que acontece quando as pessoas tentam alterar a realidade externa - no caso, criar um novo mundo - sem realizar nenhuma modificação prévia essencial na sua realidade interior, no seu estado de consciência. Elas fazem planos sem levar em conta o "modelo" de distúrbio que todo ser humano traz dentro de si: o ego.

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