sábado, 2 de novembro de 2013

A voz na nossa cabeça

  • Tive meu primeiro lampejo de consciência quando era aluno do primeiro ano na Universidade de Londres. Eu tomava o metrô duas vezes por semana para ir à biblioteca da universidade, em geral por volta das nove horas da manhã, quase no fim do horário de maior movimento. Certa vez, uma mulher com pouco mais de 30 anos sentou-se à minha frente. Eu já a tinha visto algumas vezes naquele trem. Não era possível deixar de notá-la. Embora o vagão estivesse cheio, os assentos ao seu lado permaneciam desocupados. O motivo era, sem dúvida, o fato de que ela parecia um pouco insana. Muito tensa, falava consigo mesma sem cessar em voz alta e irada. Estava tão absorta nos próprios pensamentos que dava a impressão de ignorar a presença das pessoas ao seu redor. Mantinha a cabeça baixa e ligeiramente voltada para a esquerda, como se estivesse conversando com alguém sentado no lugar vago ao seu lado. Embora eu não me lembre com exatidão das suas palavras, o monólogo que essa mulher desfiava era algo como: "E então ela me disse... e depois eu disse que ela era uma mentirosa que ousava me acusar... você sempre tirou vantagem da confiança que eu tinha em você e me traiu..." Seu tom de voz era raivoso como o de uma pessoa que fora enganada, que precisava defender sua posição ou se sentiria aniquilada.

  •  Enquanto o trem se aproximava da estação Tottenham Court Road, ela se levantou e se dirigiu à porta sem interromper a torrente de palavras que lhe brotava dos lábios. Como eu também ia saltar ali, fui andando atrás dela. No nível da rua, a mulher começou a caminhar para a Bedford Square, ainda envolvida no diálogo imaginário. Minha curiosidade aumentou. Como ela estava se deslocando na mesma direção que eu tomaria, decidi segui-la. Embora permanecesse envolvida naquela conversa fantasiosa, a mulher parecia saber para onde estava indo. Logo estávamos próximos à imponente estrutura do Senate House, um edifício de 1930, onde se localizavam o prédio da administração central da universidade e a biblioteca. Fiquei chocado. Seria possível que estivéssemos nos encaminhando para o mesmo lugar? Sim, era para onde ela ia. Será que a mulher era uma professora, uma aluna, uma funcionária administrativa, uma bibliotecária? Talvez fizesse parte de um projeto de pesquisa psicológica. Nunca soube a resposta. Procurei me manter 20 passos atrás dela, mas, no momento em que entrei no prédio (onde, ironicamente, funcionava a sede da Polícia do Pensamento na versão cinematográfica do romance 1984, de George Orwell), ela já tinha desaparecido num dos elevadores.

  •  Fiquei impressionado com o que acabara de testemunhar. Aos 25 anos, eu era um aluno maduro do primeiro ano da faculdade e me considerava um intelectual em desenvolvimento. Estava convencido de que todas as respostas aos dilemas da existência humana podiam ser encontradas por meio do intelecto, isto é, pelo pensamento. Não compreendia ainda que o pensamento sem a consciência é o principal dilema da existência humana. Para mim, os professores eram sábios que tinham todas as respostas, enquanto a universidade era um templo do conhecimento. Como poderia uma pessoa insana como aquela fazer parte disso? 

  •  Ainda estava com a mente voltada para aquela mulher enquanto lavava as mãos no banheiro da biblioteca. Pensei: "Espero não acabar como ela." O homem ao meu lado olhou na minha direção. Fiquei chocado de repente ao perceber que havia não apenas pensado naquelas palavras como as tinha murmurado. "Ai, meu Deus, já estou como ela", pensei. Não seria minha mente incessantemente ativa como a dela? Havia diferenças mínimas entre nós. A emoção subjacente que predominava por trás do pensamento da mulher parecia ser a raiva. No meu caso, era sobretudo a ansiedade. Ela pensava em voz alta. Eu, na maior parte do tempo, apenas pensava. Se ela fosse maluca, então todo mundo seria louco também, inclusive eu. Só havia diferenças de grau.

  •  Por um momento, fui capaz de me distanciar da minha própria mente e vê-la de uma perspectiva mais profunda, como ela era. Percebi uma breve mudança - do processo de pensar para o estado de consciência. Eu ainda estava no banheiro, porém sozinho agora, olhando para meu rosto refletido no espelho. No momento em que me desliguei da minha mente, ri em voz alta. Deve ter soado como uma birutice, no entanto era o riso da sanidade, aquele do Buda barrigudo. "A vida não é tão séria quanto minha mente a faz parecer." Era o que a risada parecia dizer. Contudo, aquilo foi apenas um lampejo, e eu o esqueceria bem rápido. Acabei passando os três anos seguintes num estado de ansiedade e depressão, completamente identificado com minha mente. Foi preciso que eu chegasse muito perto do suicídio para que minha consciência retornasse. Depois disso ocorreu bem mais do que um lampejo. Eu me libertei do pensamento compulsivo e do falso eu criado pela mente. 

  • Aquele episódio envolvendo a mulher não só me deu a primeira centelha de consciência como despertou minha primeira dúvida quanto à validade absoluta do intelecto humano. Meses mais tarde, um fato trágico fez com que essa dúvida aumentasse. Numa manhã de segunda-feira, eu e outras pessoas chegamos à universidade para assistir à palestra de um professor cujas idéias eu admirava muito. Mas fomos informados de que ele havia cometido suicídio no fim de semana - atirara em si mesmo. Fiquei atordoado. Ele era um professor altamente respeitado e parecia ter respostas para tudo. No entanto, até aquele momento, eu não conseguia identificar nenhuma alternativa para o cultivo do pensamento. Ainda não compreendia que pensar é apenas um minúsculo aspecto da consciência que somos. Além disso, não sabia nada sobre o ego, quanto mais sobre como detectá-lo em mim mesmo

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