terça-feira, 5 de novembro de 2013

Rompendo a identificação com o corpo de dor

  • Quem possui um corpo de dor forte e ativo emana uma energia específica que as outras pessoas sentem como algo extremamente desagradável. Quando elas encontram alguém que tem um corpo de dor desse tipo, sua reação imediata é se afastar ou reduzir o contato com ele ao mínimo. Elas se sentem repelidas por esse campo energético. Outras são tomadas por um impulso agressivo e se tornam rudes ou atacam esse indivíduo com palavras e, em alguns casos, até mesmo fisicamente. Isso significa que existe algo dentro delas que está em consonância com o corpo de dor. O que as leva a reagir de modo tão intenso também se encontra em seu interior. É seu próprio corpo de dor.

  •  Não surpreende que as pessoas com um corpo de dor pesado e freqüentemente ativo costumem se ver em situações de conflito. Às vezes, é claro, elas próprias as causam. Mas outras vezes de fato não fazem nada. O negativismo que transmitem é suficiente para atrair hostilidade e gerar confrontos. Somente um alto grau de presença nos impede de reagir quando somos provocados por alguém com um corpo de dor tão ativo assim. Quando conseguimos permanecer presentes, algumas vezes esse estado de consciência permite que a outra pessoa deixe de se identificar com seu próprio corpo de dor e, dessa forma, sinta o milagre de um repentino despertar. Embora o despertar possa ter curta duração, o processo terá se iniciado. 

  •  Um dos primeiros casos desse tipo de despertar que testemunhei aconteceu muitos anos atrás. A campainha da minha porta tocou perto das 11 horas da noite. Pelo interfone ouvi uma voz carregada de ansiedade. Era minha vizinha Ethel.
  •  - Preciso conversar com você. É muito importante. Por favor, deixe-me entrar. 
  •  Ethel era uma mulher de meia-idade, inteligente e com instrução de nível superior. Ela também possuía um ego bastante forte e um corpo de dor pesado. Conseguira escapar da Alemanha nazista quando era adolescente, porém muitos de seus parentes foram mortos em campos de concentração. 

  • Ela se sentou no meu sofá, agitada, as mãos trêmulas. Em seguida, tirou cartas e documentos da pasta que trazia consigo e espalhou tudo pelo sofá e pelo chão. Na mesma hora, tive uma estranha sensação: foi como se um dimmer tivesse levado a parte interna do meu corpo à potência máxima. Não havia nada a fazer, a não ser permanecer receptivo, alerta e intensamente presente. Olhei para ela sem pensar em nada e sem julgar, apenas a ouvi em silêncio, sem fazer nenhum comentário mental. Uma torrente de palavras brotou da sua boca.

  •  Recebi mais uma carta perturbadora hoje. Eles estão tramando uma vingança contra mim. Você precisa me ajudar. Temos que lutar contra eles juntos. Nada deterá os advogados vigaristas que eles têm. Vou perder minha casa. Estão me ameaçando com o despejo.

  •  Ao que parecia, Ethel se recusara a pagar a taxa de condomínio porque os administradores do imóvel em que ela morava não haviam feito alguns consertos necessários. Eles, por sua vez, ameaçavam processá-la.

  •  Ethel falou por uns 10 minutos. Permaneci ali sentado, olhando e escutando. De repente, ela se calou e olhou para a papelada ao seu redor como se tivesse acabado de acordar de um sonho. Ficou calma e suave. Todo o seu campo energético havia mudado. 
  • Então olhou para mim e disse: 
  •  - Isso não tem importância nenhuma, não é mesmo? 
  •  - Não, não tem - respondi. 
  •  Após uns dois minutos de silêncio, ela recolheu os papéis e saiu. Na manhã seguinte, me parou na rua e ficou me olhando com um jeito desconfiado. "O que você fez comigo? Ontem eu tive minha primeira boa noite de sono em anos. Na verdade, dormi como um bebê."

  •  Ela acreditava que eu havia "feito alguma coisa", mas eu não tinha feito nada. Talvez Ethel devesse ter perguntado o que eu não havia feito. Não esbocei nenhuma reação, não confirmei a realidade da sua história nem alimentei sua mente com mais pensamentos nem seu corpo de dor com mais emoções. Deixei-a livre para vivenciar seus sentimentos naquele momento, e a força de permitir está em não interferir, em não fazer nada. Estarmos presentes é sempre infinitamente mais importante do que tudo o que possamos dizer ou fazer, embora às vezes o estado de presença suscite palavras ou ações.

  •  O que aconteceu com ela não chegou a ser uma mudança permanente, e sim um vislumbre do que é possível, de algo que já estava no seu interior. No zen, esse lampejo é chamado de satori. O satori é um momento de presença, um breve afastamento da voz na nossa cabeça, dos processos do pensamento e do seu reflexo sobre o corpo como emoção. É o despertar da dimensão interior onde antes estavam o emaranhado de pensamentos e o turbilhão das emoções. 

  •  A mente abarrotada de pensamentos não é capaz de compreender a presença e, assim, costuma interpretá-la mal. Ela nos dirá que não estamos preocupados, que estamos distantes, que não temos compaixão, que não estamos nos relacionando. A verdade é que estamos interagindo, porém num nível mais profundo do que o dos pensamentos e das emoções. Na realidade, nesse nível existe um encontro genuíno, uma autêntica união que vai muito além do relacionamento. Na calma silenciosa da presença, conseguimos sentir a nossa essência sem forma e a da outra pessoa como algo único. Sabermos que nós e o outro somos um só é o verdadeiro amor, a verdadeira atenção, a verdadeira compaixão.

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