terça-feira, 5 de novembro de 2013

Conhecendo a nós mesmos e sobre nós mesmos


  • Talvez não queiramos nos conhecer porque sentimos medo do que podemos descobrir. Muitos indivíduos têm um temor secreto de que sejam maus. Mas nada que uma pessoa possa vir a saber a seu respeito é ela. Nada que venha a conhecer sobre si mesma é ela.

  •  Embora alguns indivíduos não queiram saber quem são por causa do temor, outros têm uma curiosidade insaciável a seu próprio respeito e desejam descobrir cada vez mais. Há quem seja tão fascinado por si mesmo que passe anos fazendo psicanálise, mergulhando em todos os aspectos da sua infância, descobrindo medos e desejos secretos e encontrando camadas e mais camadas de complexidade na constituição da sua personalidade e do seu caráter. Depois de 10 anos, o terapeuta pode ficar cansado desse cliente e da sua história e lhe dizer que a análise acabou. Talvez ele o mande embora com um dossiê de 5 mil páginas e lhe diga: "Tudo isso é sobre você. Isso é o que você é." Quando a pessoa carrega a pesada pasta para casa, sua satisfação inicial de, finalmente, conhecer a si mesma é logo substituída por um sentimento de insatisfação e por uma suspeita insidiosa de que deve haver mais coisas sobre quem ela é do que aquilo. E, na verdade, existe mais - talvez não em termos quantitativos, de mais fatos, e sim na dimensão qualitativa da profundidade.

  •  Não há nada de errado com a psicanálise nem com o fato de alguém descobrir mais a respeito do seu passado, desde que não confunda conhecer sobre si mesmo com conhecer a si mesmo. O dossiê de 5 mil páginas é sobre a pessoa: o conteúdo da sua mente que é condicionado pelo passado. Seja o que for que ela venha a aprender pela psicanálise ou pela observação de si mesma será sobre ela. Não é ela. É conteúdo, e não essência. Ir além do ego é sair do conteúdo. Conhecer a nós mesmos é ser nós mesmos. E ser nós mesmos é pararmos de nos identificar com o conteúdo. 

  •  As pessoas, em sua maioria, definem-se pelo conteúdo de suas vidas. Qualquer coisa que alguém perceba, experimente, faça, pense ou sinta é conteúdo. O conteúdo é o que absorve inteiramente a atenção da maior parte dos indivíduos e é aquilo com o que eles se identificam. Quando pensamos ou dizemos "minha vida", não estamos nos referindo à vida que nós somos, e sim à vida que temos ou parecemos ter. Estamos fazendo menção ao conteúdo, a elementos como idade, saúde, relacionamentos, finanças e trabalho, assim como a nosso estado "mental-emocional". As circunstâncias interiores e exteriores da nossa vida, bem como nosso passado e nosso futuro, pertencem ao âmbito do conteúdo - da mesma forma que os eventos, isto é, tudo o que acontece.

  •  O que existe além do conteúdo? Aquilo que permite que ele exista - o espaço interior da consciência.

A abundância

  • Quem nós pensamos que somos está intimamente ligado a como nos consideramos tratados pelos outros. Muitas pessoas se queixam de que não recebem um tratamento bom o bastante. "Não me tratam com respeito, atenção, reconhecimento, consideração. Tratam-me como se eu não tivesse valor", elas dizem. Quando o tratamento é bondoso, elas suspeitam de motivos ocultos. "Os outros querem me manipular, levar vantagem sobre mim. Ninguém me ama."

  •  Quem elas pensam que são é isto: "Sou um pequeno eu' carente cujas necessidades não estão sendo satisfeitas." Esse erro básico de percepção de quem elas são cria um distúrbio em todos os seus relacionamentos. Esses indivíduos acreditam que não têm nada a dar e que o mundo ou os outros estão ocultando delas aquilo de que precisam. Toda a sua realidade se baseia num sentido ilusório de quem elas são. Isso sabota situações, prejudica todos os relacionamentos. Se o pensamento de falta - seja de dinheiro, reconhecimento ou amor - se tornou parte de quem pensamos que somos, sempre experimentaremos a falta. Em vez de reconhecermos o que já há de bom na nossa vida, tudo o que vemos é carência. Detectarmos o que existe de positivo na nossa vida é a base de toda a abundância. O fato é o seguinte: seja o que for que nós pensemos que o mundo está nos tirando é isso que estamos tirando do mundo. Agimos assim porque no fundo acreditamos que somos pequenos e que não temos nada a dar.

  •  Se esse for o seu caso, experimente fazer o seguinte por duas semanas e veja como sua realidade mudará: dê às pessoas qualquer coisa que você pense que elas estão lhe negando - elogios, apreço, ajuda, atenção, etc. Você não tem isso? Aja exatamente como se tivesse e tudo isso surgirá. Logo depois que você começar a dar, passará a receber. Ninguém pode ganhar o que não dá. O fluxo de entrada determina o fluxo de saída. Seja o que for que você acredite que o mundo não está lhe concedendo você já possui. Contudo, a menos que permita que isso flua para fora de você, nem mesmo saberá que tem. Isso inclui a abundância. A lei segundo a qual o fluxo de saída determina o fluxo de entrada é expressa por Jesus nesta imagem marcante: "Dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada, sacudida e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também."1

  •  A fonte de toda a abundância não está fora de você. Ela é parte de quem você é. Entretanto, comece por admitir e reconhecê-la exteriormente. Veja a plenitude da vida ao seu redor. O calor do sol sobre sua pele, a exibição de flores magníficas num quiosque de plantas, o sabor de uma fruta suculenta, a sensação no corpo de toda a força da chuva que cai do céu. A plenitude da vida está presente a cada passo. Seu reconhecimento desperta a abundância interior adormecida. Então permita que ela flua para fora. Só fato de você sorrir para um estranho já promove uma mínima saída de energia. Você se torna um doador. Pergunte-se com freqüência: "O que posso dar neste caso? Como posso prestar um serviço a esta pessoa nesta situação?" Você não precisa ser dono de nada para perceber que tem abundância. Porém, se sentir com freqüência que a possui, é quase certo que as coisas comecem a acontecer na sua vida. Ela só chega para aqueles que já a têm. Parece um tanto injusto, mas é claro que não é. É uma lei universal. Tanto a fartura quanto a escassez são estados interiores que se manifestam como nossa realidade. Jesus fala sobre isso da seguinte maneira: "Pois, ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que não tem."2

Quem pensamos que somos

  • Nosso sentido de quem somos determina o que percebemos como nossas necessidades e o que importa na nossa vida - e o que nos interessa tem o poder de nos irritar e perturbar. Podemos usar isso como um critério para descobrir até que ponto nos conhecemos. O que nos interessa não é o que dizemos nem aquilo em que acreditamos, mas o que nossas ações e reações revelam como importante e sério. Portanto, talvez queiramos nos fazer a seguinte pergunta: o que me irrita e perturba? Se coisas pequenas têm a capacidade de nos atormentar, então quem pensamos que somos é exatamente isto: pequeno. Essa é nossa crença inconsciente. Quais são as coisas pequenas? No fim das contas, todas as coisas são pequenas porque todas elas são efêmeras. 

  •  Podemos até dizer: "Sei que sou um espírito imortal" ou "Estou cansado deste mundo louco. Tudo o que quero é paz" - até o telefone tocar. Más notícias: o mercado de ações caiu, o acordo pode não dar certo, o carro foi roubado, nossa sogra chegou, cancelaram a viagem, o contrato foi rompido, nosso parceiro ou parceira foi embora, alguém exige mais dinheiro, somos responsabilizados por algo. De repente ocorre um ímpeto de raiva, de ansiedade. Uma aspereza brota na nossa voz: "Não agüento mais isto." Acusamos e criticamos, atacamos, defendemos ou nos justificamos, e tudo acontece no piloto automático. Alguma coisa obviamente é muito mais importante agora do que a paz interior que um momento atrás dissemos que era tudo o que desejávamos. E já não somos mais um espírito imortal. O acordo, o dinheiro, o contrato, a perda ou a possibilidade da perda são mais relevantes. Para quem? Para o espírito imortal que dissemos ser? Não, para nosso pequeno eu que busca segurança ou satisfação em coisas que são transitórias e fica ansioso ou irado porque não consegue o que deseja. Bem, pelo menos agora sabemos quem de fato pensamos que somos. 

  •  Se a paz é de fato aquilo que desejamos, então devemos escolhê-la. Se ela fosse mais importante para nós do que qualquer outra coisa e se nós nos reconhecêssemos de verdade como um espírito em vez de um pequeno eu, permaneceríamos sem reagir e num absoluto estado de alerta quando confrontados com pessoas ou circunstâncias desafiadoras. Aceitaríamos de imediato a situação e, assim, nos tornaríamos um com ela em vez de nos separarmos dela. Depois, da nossa atenção consciente surgiria uma reação. Quem nós somos (consciência) - e não quem pensamos que somos (um pequeno eu) - estaria reagindo. Isso seria algo poderoso e eficaz e não faria de ninguém nem de uma situação um inimigo. 

  •  O mundo sempre se assegura de impedir que nos enganemos por muito tempo sobre quem de fato pensamos que somos nos mostrando o que realmente é importante para nós. A maneira como reagimos a pessoas e situações, sobretudo quando surge um desafio, é o melhor indício de até que ponto nos conhecemos a fundo. 

  •  Quanto mais limitada, quanto mais estreitamente egóica é a visão que temos de nós mesmos, mais nos concentramos nas limitações egóicas - na inconsciência - dos outros e reagimos a elas. Os "erros" das pessoas ou o que percebemos como suas falhas se tornam para nós a identidade delas. Isso significa que vemos apenas o ego nos outros e, assim, fortalecemos o ego em nós. Em vez de olharmos "através" do ego deles, olhamos "para" o ego. E quem está fazendo isso? O ego em nós.

  •  As pessoas muito inconscientes sentem o próprio ego por meio do seu reflexo nos outros. Quando compreendemos que aquilo a que reagimos nos outros também está em nós (e algumas vezes apenas em nós), começamos a nos tornar conscientes do nosso próprio ego. Nesse estágio, podemos também compreender que estamos fazendo às pessoas o que pensávamos que elas estavam fazendo a nós. Paramos de nos ver como uma vítima. 

  •  Nós não somos o ego. Portanto, quando nos tornamos conscientes do ego em nós, isso não significa que sabemos quem somos - isso quer dizer que sabemos quem não somos. Mas é por meio do conhecimento de quem não somos que o maior obstáculo ao verdadeiro conhecimento de nós mesmos é removido. 

  •  Ninguém pode nos dizer quem somos. Seria apenas outro conceito, portanto não nos faria mudar. Quem nós somos não requer crença. Na verdade, toda crença é um obstáculo. Isso não exige nem mesmo nossa compreensão, uma vez que já somos quem somos. No entanto, sem a compreensão, quem nós somos não brilha neste mundo. Permanece na dimensão não manifestada que, é claro, é seu verdadeiro lar. Nós somos então como uma pessoa aparentemente pobre que não sabe que tem uma conta de 100 milhões de reais no banco. Com isso, nossa riqueza permanece um potencial oculto.

Descobrindo quem somos realmente

  • Gnothi Seauton - "Conhece-te a ti mesmo". Essas palavras estavam inscritas acima da entrada do templo de Apolo em Delfos, lugar do Oráculo sagrado. Na Grécia antiga, as pessoas visitavam o Oráculo esperando descobrir o que o destino lhes reservava ou o que fazer em determinada situação. É provável que a maioria delas lesse essa frase sem compreender que ela indicava uma verdade mais profunda do que qualquer coisa que o Oráculo pudesse dizer. Talvez os visitantes também não compreendessem que, por mais importante que fosse a revelação ou exatas as informações que recebessem, elas acabariam por se mostrar inúteis, não os salvariam de infelicidades futuras nem de sofrimentos criados por eles mesmos, caso deixassem de encontrar a verdade contida na exortação "Conhece-te a ti mesmo". O significado implícito dessas palavras é: antes de qualquer indagação, faça a pergunta fundamental da sua vida: quem sou eu? 

  •  As pessoas inconscientes - e muitas permanecem nesse estado, presas ao ego ao longo de toda a sua existência - rapidamente nos dirão quem elas são: seu nome, sua ocupação, sua história pessoal, a forma ou a condição do seu corpo e qualquer outra coisa com a qual se identifiquem. Outras podem parecer mais evoluídas porque se consideram almas imortais ou espíritos divinos. Mas será que elas conhecem de fato a si mesmas ou será que apenas acrescentaram alguns conceitos espiritualistas ao conteúdo da sua mente? Conhecer a si mesmo é algo muito mais profundo do que a adoção de um conjunto de idéias ou crenças. As idéias e crenças espirituais podem, no máximo, ser indicadores úteis, no entanto poucas vezes têm o poder de desalojar os conceitos centrais mais firmemente estabelecidos de quem pensamos que somos, os quais fazem parte do condicionamento da mente humana. O profundo autoconhecimento não tem nada a ver com nenhuma idéia que esteja flutuando em torno da nossa mente. Conhecer a nós mesmos é estarmos enraizados no Ser em vez de estarmos perdidos na nossa mente.

A libertação do corpo de dor

  • Uma pergunta que as pessoas costumam fazer é: "De quanto tempo precisamos para nos libertar do corpo de dor?" Evidentemente, isso depende tanto da densidade do corpo de dor (quanto do grau ou da intensidade da presença manifestada de cada um de nós. No entanto, não é o corpo de dor, e sim a identificação com ele que causa o sofrimento que infligimos a nós mesmos e aos outros. É essa identificação que nos leva a reviver o passado vezes sem conta e nos mantém no estado de inconsciência. Assim, uma pergunta mais importante a fazer seria esta: "De quanto tempo necessitamos para nos libertar da identificação com o corpo de dor?"

  •  A resposta a essa pergunta é: não demora tempo nenhum. Sempre que o corpo de dor estiver em atividade, temos que estar cientes de que o que estamos sentindo é o corpo de dor em nós. Esse conhecimento é tudo de que precisamos para interromper a identificação com ele. E, quando essa identificação cessa, a transmutação tem início. O conhecimento impede que as emoções antigas surjam na nossa cabeça e controlem não só o dialogo interior como também nossas ações e interações com as pessoas. Assim, o corpo de dor não conseguirá mais nos usar e se renovar por nosso intermédio. As antigas emoções podem ainda viver em nós por algum tempo e aparecer de vez em quando. Talvez também nos enganem ocasionalmente, fazendo com que nos identifiquemos com elas de novo e, desse modo, obscureçam o conhecimento, porém não por muito tempo. Não projetarmos as antigas emoções nas situações significa que devemos encará-las diretamente dentro de nós. Pode não ser agradável, mas isso não chega a nos matar. Nossa presença é mais do que capaz de contê-las. As emoções não são quem nós somos.

  •  Portanto, quando sentir o corpo de dor, não cometa o equívoco de pensar que existe algo errado com você. O ego adora quando você faz de si mesmo um problema. O conhecimento precisa ser seguido pela aceitação. Qualquer outra coisa irá obscurecê-lo novamente. Aceitação significa que você se permite sentir qualquer coisa naquele momento. Isso é parte da essência do Agora. Você não pode discutir com o que é. Bem, você pode. No entanto, se fizer isso, sofrerá. Por meio da aceitação, você se torna o que você é: vasto, pleno de espaço. Transforma-se no todo. Não é mais um fragmento, que é como o ego vê a si mesmo. Sua natureza verdadeira emerge, e ela está unificada com a natureza de Deus. 

  •  Jesus indica isso nesta passagem: "Portanto, sede um todo, assim como vosso Pai celeste é um iodo."1 No Novo Testamento temos, porém, "sede perfeitos", o que é um erro de tradução da palavra grega original, que significa "todo". Ou seja, não precisamos nos tornar um todo, mas sermos o que já somos - com ou sem o corpo de dor.

O corpo de dor como um despertador

  • A primeira vista, pode parecer que o corpo de dor é o maior obstáculo para o surgimento de uma nova consciência na humanidade. Ele ocupa nossa mente, controla e distorce nosso pensamento, perturba nossos relacionamentos e se parece com uma nuvem carregada que toma todo o nosso campo energético. Tende a nos deixar inconscientes, espiritualmente falando, isto é, num estado de total identificação com a mente e a emoção. Ele nos faz reagir a tudo, nos leva a dizer e fazer coisas que são criadas para intensificar a infelicidade que existe em nós e no mundo. 

  •  No entanto, à medida que a infelicidade aumenta, ela provoca uma perturbação crescente na nossa vida. Talvez o corpo não suporte mais o estresse e desenvolva uma doença ou um distúrbio. Pode ser que nos vejamos envolvidos num acidente, numa situação dramática ou num enorme conflito que tenham sido desencadeados pelo desejo do corpo de dor de que algo de mal acontecesse. Além disso, podemos acabar praticando uma violência física. Ou, quem sabe, tudo isso assuma uma proporção tão grande que não sejamos mais capazes de viver com nosso eu infeliz. O corpo de dor, é claro, faz parte desse falso eu. 

  •  Sempre que somos arrebatados pelo corpo de dor, toda vez que não o reconhecemos, ele se torna parte do nosso ego. Qualquer elemento com o qual nos identificamos se transforma no ego. O corpo de dor é uma das coisas mais poderosas com que o ego pode se identificar, assim como o ego é fundamental para o corpo de dor, que precisa dele para se renovar. Essa aliança perversa, contudo, costuma desmoronar nos casos em que o corpo de dor é tão pesado que as estruturas da mente egóica, em vez de serem fortalecidas por ele, são desintegradas pelo ataque ininterrupto de sua carga energética, da mesma maneira que um aparelho eletrônico pode ser posto em funcionamento por uma corrente elétrica, mas também destruído por ela se a voltagem for muito elevada. 

  •  Quem tem um corpo de dor muito forte costuma chegar a um ponto em que sente que sua vida está se tornando insuportável, em que não consegue mais tolerar a dor nem situações difíceis. Já houve quem expressasse isso dizendo com toda a franqueza e simplicidade que estava "cheio de ser infeliz". Algumas pessoas podem sentir, como foi meu caso, que não são mais capazes de viver consigo mesmas. A paz interior torna-se então sua principal prioridade. Sua aguda dor emocional as força a romper a identificação com o conteúdo da mente e com as estruturas mentais emocionais que dão origem a seu eu infeliz e o perpetuam. Assim, elas ficam sabendo que nem sua triste história nem a emoção que sentem são elas próprias. Compreendem que elas são o conhecer, e não o que é conhecido. Em vez de levá-las à inconsciência, o corpo de dor transforma-se no seu despertador, o fator decisivo que as faz alcançar o estado de presença. 

  •  No entanto, como estamos testemunhando uma afluência sem precedentes de consciência sobre o planeta neste momento, muitas pessoas não precisam mais chegar às profundezas do mais agudo sofrimento para conseguir romper a identificação com o corpo de dor. Sempre que elas percebem que voltaram a cair no terreno do distúrbio, são capazes de escolher abandonar a identificação com o pensamento e com a emoção e voltar para o estado de presença. Elas abrem mão da resistência, tornam-se calmas e atentas, alcançam a unificação com o que existe, dentro e fora de si mesmas. 

  •  O próximo passo na evolução humana não é inevitável, mas, pela primeira vez na história do planeta, pode ser uma escolha consciente. Quem está fazendo essa escolha? Você está. E quem é você? A consciência que se tornou consciente de si mesma.

"ESTIMULOS"

  • Alguns corpos de dor reagem a apenas um tipo de estímulo ou situação, que em geral é aquele que está em consonância com determinada espécie de dor emocional sofrida no passado. Por exemplo, se uma criança cresce com pais cuja renda familiar era a causa de brigas e conflitos freqüentes, ela pode absorver o medo deles em relação ao dinheiro e desenvolver um corpo de dor que é incitado sempre que fatores financeiros estão envolvidos. Quando adulta, essa pessoa ficará aborrecida ou furiosa até mesmo em relação a quantias insignificantes. Por trás da contrariedade ou da raiva estão questões de sobrevivência e um temor intenso. Tenho visto indivíduos espiritualizados, isto é, relativamente conscientes, que começam a gritar, culpar e fazer acusações no instante em que pegam o telefone para falar com seu corretor de ações ou seu contador. Assim como existem advertências em relação à saúde nas embalagens de cigarro, talvez devesse haver avisos semelhantes em cada cédula de dinheiro e folha de cheque: "O dinheiro pode acionar o corpo de dor e causar a inconsciência total." 

  •  Alguém que na infância tenha sido negligenciado ou abandonado por um dos pais ou por ambos desenvolverá, provavelmente, um corpo de dor que será estimulado por qualquer situação que lembre, até mesmo de forma remota, o sofrimento primordial do abandono. Tanto um amigo que se atrase cinco minutos para pegar a pessoa no aeroporto quanto um cônjuge que chega tarde em casa podem deflagrar um ataque violento do seu corpo de dor. Se seu parceiro ou cônjuge o deixa ou morre, a dor emocional que esse indivíduo sente vai muito além da que é natural em circunstâncias como essas. Pode ser uma angústia intensa, uma depressão duradoura e incapacitante ou uma raiva obsessiva. 

  •  Uma mulher que tenha sido violentada pelo próprio pai na infância talvez perceba que seu corpo de dor se torna facilmente ativo em qualquer relacionamento íntimo com um homem. Por outro lado, a emoção que constitui seu corpo de dor talvez a faça se sentir atraída por um indivíduo cujo corpo de dor seja semelhante ao do seu pai. O corpo de dor dessa mulher pode ter uma atração magnética por alguém que ele sinta que lhe dará mais do mesmo sofrimento. E, algumas vezes, ela pode confundir essa dor com a sensação de estar apaixonada.

  •  Um homem que foi uma criança indesejada e não recebeu amor nem o mínimo de cuidado e de atenção da mãe desenvolve um corpo de dor marcado por uma profunda ambivalência - por um lado, apresenta um intenso e insatisfeito desejo pelo amor e pela atenção da mãe e, por outro, um forte rancor em relação a ela por ter lhe negado aquilo de que ele precisava desesperadamente. No caso desse adulto, quase todas as mulheres despertam a carência do seu corpo de dor - uma forma de sofrimento emocional. Ele a manifesta por meio de uma compulsão a "conquistar e seduzir" quase toda mulher que vem a conhecer e, dessa maneira, pretende obter o amor feminino pelo qual seu corpo de dor anseia. Esse homem se transforma quase num especialista em sedução. No entanto, assim que um relacionamento se torna íntimo ou seus avanços são rejeitados, a raiva do seu corpo de dor em relação à mãe vem à tona e sabota a relação.

  •  Quando reconhecemos nosso próprio corpo de dor no momento em que ele surge, também passamos a detectar com rapidez os estímulos mais comuns que o colocam em ação, sejam situações, sejam determinadas coisas que as pessoas fazem ou dizem. No instante em que esses estímulos aparecem, nós os vemos de imediato pelo que eles são e entramos num intenso estado de alerta. Em questão de segundos, percebemos também a reação emocional, que é o surgimento do corpo de dor. Porém, nesse estado de presença, não nos identificamos com ele, o que significa que o corpo de dor não consegue assumir o controle sobre nós e se tornar a voz na nossa cabeça. Se estamos com nosso parceiro ou nossa parceira nesse momento, podemos lhe dizer: "O que você acabou de dizer (ou fazer) despertou meu corpo de dor." Portanto, estabeleça um acordo com seu companheiro ou companheira: sempre que disserem ou fizerem algo que desperte o corpo de dor do outro, mencionem isso na hora. Dessa maneira, o corpo de dor não poderá mais se renovar por intermédio do desentendimento entre vocês e, em vez de levá-los à inconsciência, os ajudará a ficar inteiramente presentes. 

  •  Toda vez que estamos presentes quando o corpo de dor se manifesta, uma parte da energia emocional negativa que o constitui se queima, por assim dizer, e é transmutada em presença. O que resta dele se retira rapidamente e espera por uma oportunidade melhor para aparecer, isto é, quando estivermos menos conscientes. Isso pode acontecer sempre que saímos do estado de presença, talvez depois de tomarmos alguns drinques ou enquanto assistimos a um filme violento. A mais leve emoção negativa, como uma sensação de irritação ou ansiedade, também pode servir como uma passagem pela qual o corpo de dor consegue retornar. Ele precisa da nossa inconsciência, pois não é capaz de tolerar a luz da presença.

Rompendo a identificação com o corpo de dor

  • Quem possui um corpo de dor forte e ativo emana uma energia específica que as outras pessoas sentem como algo extremamente desagradável. Quando elas encontram alguém que tem um corpo de dor desse tipo, sua reação imediata é se afastar ou reduzir o contato com ele ao mínimo. Elas se sentem repelidas por esse campo energético. Outras são tomadas por um impulso agressivo e se tornam rudes ou atacam esse indivíduo com palavras e, em alguns casos, até mesmo fisicamente. Isso significa que existe algo dentro delas que está em consonância com o corpo de dor. O que as leva a reagir de modo tão intenso também se encontra em seu interior. É seu próprio corpo de dor.

  •  Não surpreende que as pessoas com um corpo de dor pesado e freqüentemente ativo costumem se ver em situações de conflito. Às vezes, é claro, elas próprias as causam. Mas outras vezes de fato não fazem nada. O negativismo que transmitem é suficiente para atrair hostilidade e gerar confrontos. Somente um alto grau de presença nos impede de reagir quando somos provocados por alguém com um corpo de dor tão ativo assim. Quando conseguimos permanecer presentes, algumas vezes esse estado de consciência permite que a outra pessoa deixe de se identificar com seu próprio corpo de dor e, dessa forma, sinta o milagre de um repentino despertar. Embora o despertar possa ter curta duração, o processo terá se iniciado. 

  •  Um dos primeiros casos desse tipo de despertar que testemunhei aconteceu muitos anos atrás. A campainha da minha porta tocou perto das 11 horas da noite. Pelo interfone ouvi uma voz carregada de ansiedade. Era minha vizinha Ethel.
  •  - Preciso conversar com você. É muito importante. Por favor, deixe-me entrar. 
  •  Ethel era uma mulher de meia-idade, inteligente e com instrução de nível superior. Ela também possuía um ego bastante forte e um corpo de dor pesado. Conseguira escapar da Alemanha nazista quando era adolescente, porém muitos de seus parentes foram mortos em campos de concentração. 

  • Ela se sentou no meu sofá, agitada, as mãos trêmulas. Em seguida, tirou cartas e documentos da pasta que trazia consigo e espalhou tudo pelo sofá e pelo chão. Na mesma hora, tive uma estranha sensação: foi como se um dimmer tivesse levado a parte interna do meu corpo à potência máxima. Não havia nada a fazer, a não ser permanecer receptivo, alerta e intensamente presente. Olhei para ela sem pensar em nada e sem julgar, apenas a ouvi em silêncio, sem fazer nenhum comentário mental. Uma torrente de palavras brotou da sua boca.

  •  Recebi mais uma carta perturbadora hoje. Eles estão tramando uma vingança contra mim. Você precisa me ajudar. Temos que lutar contra eles juntos. Nada deterá os advogados vigaristas que eles têm. Vou perder minha casa. Estão me ameaçando com o despejo.

  •  Ao que parecia, Ethel se recusara a pagar a taxa de condomínio porque os administradores do imóvel em que ela morava não haviam feito alguns consertos necessários. Eles, por sua vez, ameaçavam processá-la.

  •  Ethel falou por uns 10 minutos. Permaneci ali sentado, olhando e escutando. De repente, ela se calou e olhou para a papelada ao seu redor como se tivesse acabado de acordar de um sonho. Ficou calma e suave. Todo o seu campo energético havia mudado. 
  • Então olhou para mim e disse: 
  •  - Isso não tem importância nenhuma, não é mesmo? 
  •  - Não, não tem - respondi. 
  •  Após uns dois minutos de silêncio, ela recolheu os papéis e saiu. Na manhã seguinte, me parou na rua e ficou me olhando com um jeito desconfiado. "O que você fez comigo? Ontem eu tive minha primeira boa noite de sono em anos. Na verdade, dormi como um bebê."

  •  Ela acreditava que eu havia "feito alguma coisa", mas eu não tinha feito nada. Talvez Ethel devesse ter perguntado o que eu não havia feito. Não esbocei nenhuma reação, não confirmei a realidade da sua história nem alimentei sua mente com mais pensamentos nem seu corpo de dor com mais emoções. Deixei-a livre para vivenciar seus sentimentos naquele momento, e a força de permitir está em não interferir, em não fazer nada. Estarmos presentes é sempre infinitamente mais importante do que tudo o que possamos dizer ou fazer, embora às vezes o estado de presença suscite palavras ou ações.

  •  O que aconteceu com ela não chegou a ser uma mudança permanente, e sim um vislumbre do que é possível, de algo que já estava no seu interior. No zen, esse lampejo é chamado de satori. O satori é um momento de presença, um breve afastamento da voz na nossa cabeça, dos processos do pensamento e do seu reflexo sobre o corpo como emoção. É o despertar da dimensão interior onde antes estavam o emaranhado de pensamentos e o turbilhão das emoções. 

  •  A mente abarrotada de pensamentos não é capaz de compreender a presença e, assim, costuma interpretá-la mal. Ela nos dirá que não estamos preocupados, que estamos distantes, que não temos compaixão, que não estamos nos relacionando. A verdade é que estamos interagindo, porém num nível mais profundo do que o dos pensamentos e das emoções. Na realidade, nesse nível existe um encontro genuíno, uma autêntica união que vai muito além do relacionamento. Na calma silenciosa da presença, conseguimos sentir a nossa essência sem forma e a da outra pessoa como algo único. Sabermos que nós e o outro somos um só é o verdadeiro amor, a verdadeira atenção, a verdadeira compaixão.

A infelicidade

  • Nem toda infelicidade se deve ao corpo de dor. Parte dela é infelicidade nova, criada toda vez que não estamos alinhados com o momento presente, quando negamos o Agora de uma maneira ou de outra. Se reconhecemos que o momento presente é sempre o que importa e, portanto, é inevitável, podemos lhe dizer um "sim" interior descomprometido. Com isso, não só deixaremos de criar mais infelicidade como, graças ao desaparecimento da resistência interior, seremos fortalecidos pela própria Vida. 

  •  A infelicidade do corpo de dor sempre assume uma proporção desmedida em relação à sua causa aparente. Em outras palavras, é uma reação exagerada. É assim que ela é reconhecida, embora não normalmente pela vítima, a pessoa possuída. Alguém com um corpo de dor pesado tem grande facilidade em encontrar motivos para ficar aborrecido, irado, magoado, triste ou temeroso. Coisas quase insignificantes que outra pessoa teria deixado de lado com um sorriso ou que talvez nem chegasse a notar tornam-se a razão aparente de uma intensa infelicidade. Elas não são, é claro, a verdadeira causa dessa tristeza, apenas agem como um estímulo, pois trazem de volta à vida emoções antigas acumuladas. Depois, essas emoções vão para a cabeça, aumentando e energizando as estruturas mentais egóicas.

  •  O corpo de dor e o ego são parentes próximos. Eles precisam um do outro. O fato ou a circunstância que desencadeia a infelicidade são interpretados e suscitam uma reação que passa pelo filtro de um ego fortemente emocional. Isso significa que sua importância é distorcida ao extremo. A pessoa observa o presente através dos olhos do passado emocional que existe dentro dela. Em outras palavras, o que ela vê e sente não está no acontecimento nem na situação, e sim no que existe em seu próprio interior. Em alguns casos, até pode estar no acontecimento ou na situação, porém ela o exacerba por meio da sua reação. E essa atitude reativa, essa amplificação, é o que o corpo de dor quer, é disso que ele se alimenta.

  •  Para alguém possuído por um corpo de dor pesado, é sempre impossível afastar-se da sua interpretação distorcida, da "história" emocional. Quanto mais emoções negativas estiverem envolvidas nela, mais pesada e impenetrável ela será. E, assim, não é reconhecida como uma fantasia, mas vista como a realidade.

  •  Quando uma pessoa se encontra completamente dominada pela agitação dos pensamentos e pelas emoções que os acompanham, distanciar-se disso é algo improvável porque ela nem sequer sabe que existe uma saída. E, dessa maneira, continua cativa dentro do seu próprio filme ou sonho, prisioneira do seu próprio inferno. Para ela, a realidade é isso, não existe outra possível. E, no seu modo de ver, sua reação também é a única possível.

O corpo de dor nas crianças

  • O corpo de dor das crianças às vezes se manifesta como mau humor ou introspecção. A criança se retrai, recusa-se a se relacionar e pode ficar sentada num canto abraçando um boneco ou chupando o polegar. O corpo de dor também costuma se revelar por meio de acessos de choro ou de cólera. A criança grita, se atira ao chão ou se torna destrutiva. A frustração de um desejo tem a capacidade de estimular o corpo de dor com a maior facilidade. E, num ego em desenvolvimento, a força de um desejo por vezes é intensa. Os pais, impotentes e sem compreender o que está se passando, podem assistir perplexos enquanto seu pequeno anjo se transforma, de um instante para outro, num verdadeiro monstrinho. "De onde será que vem tanta infelicidade?", eles se perguntam. Numa extensão maior ou menor, é a parte que a criança detém no corpo de dor coletivo da humanidade que retorna à própria origem do ego humano. 

  •  Mas a criança pode também já ter absorvido sofrimento do corpo de dor dos pais, e então estes talvez vejam no filho um reflexo do que existe neles próprios. As crianças mais sensíveis são especialmente afetadas pelos corpos de dor do pai e da mãe. Testemunhar um desentendimento insano entre eles lhes causa uma sofrimento emocional quase insuportável. Assim, são essas crianças sensíveis que tendem a se tornar adultos com um corpo de dor pesado. As crianças não se deixam enganar por pais que tentam ocultar seu corpo de dor, dizendo um para o outro: "Não devemos brigar na frente delas." Isso significa que, enquanto eles mantêm uma conversa educada, o lar vai sendo tomado pela energia negativa. Os corpos de dor reprimidos são extremamente tóxicos, mais ainda do que os que se manifestam com franqueza, e essa toxicidade física é absorvida pelas crianças e contribui para o desenvolvimento do seu próprio corpo de dor.

  •  Algumas crianças aprendem subliminarmente sobre o ego e o corpo de dor apenas por viverem com pais muito inconscientes. Uma mulher cujos pais tinham ambos fortes egos e corpos de dor pesados me disse que, quando eles gritavam um com o outro, ela olhava na sua direção e, embora os amasse, dizia para si menu: "lestas pessoas são doidas. Como é que eu vim parar aqui?" Já havia nela a consciência da insanidade de se viver dessa maneira. Graças a essa consciência, a quantidade de dor que ela absorveu dos pais foi reduzida. 

  •  Os pais costumam pensar em como agir em relação ao corpo de dor das suas crianças. Mas a pergunta básica obviamente é: será que eles conseguem lidar com seu próprio corpo de dor? Será que o reconhecem em si mesmos? Será que são capazes de se manter presentes o bastante quando ele entra em atividade para que possam estar conscientes da emoção no nível do sentimento antes que ela tenha uma chance de se tornar pensamento e depois uma "pessoa infeliz"? 

  •  Quando o corpo de dor de uma criança está se manifestando por meio de um ataque, não há muita coisa que os pais possam fazer, exceto se manter no estado de presença para que não sejam estimulados a ter uma reação emocional. O corpo de dor da criança se alimentaria dela. Às vezes, os corpos de dor são extremamente dramáticos. Mas os pais não precisam "embarcar" nesse descontrole. Não devem levá-lo muito a sério. Se o corpo de dor tiver sido despertado pela frustração de um desejo, eles não têm agora que se render às suas exigências. Caso contrário, a criança aprenderá a seguinte lição: "Quanto mais infeliz eu me tornar, maior será a probabilidade de conseguir o que quero." Essa é uma receita para que ela apresente distúrbios no futuro. Seu corpo de dor ficará decepcionado com a falta de reação do pai e da mãe e pode atuar por mais algum tempo antes de se acalmar. Ao contrário do que ocorre com os adultos, no caso das crianças, felizmente, esses episódios costumam ser mais breves.

  •  Depois que a criança se acalmar ou talvez no dia seguinte, os pais podem conversar com ela sobre o que ocorreu. Mas não devem contar sobre o corpo de dor. Em vez disso, é melhor que lhe façam perguntas. Por exemplo: "O que deu em você ontem quando não conseguia parar de gritar? Você se lembra? Como se sentiu? Foi uma sensação boa? Aquela coisa que lhe aconteceu, será que tem um nome? Não? Caso tivesse um nome, qual seria? Se você pudesse vê-la, ela se pareceria com o quê? Você pode fazer um desenho dela? O que houve com ela depois que foi embora? Foi dormir? Você acha que ela pode voltar?"

  •  Essas são apenas algumas sugestões de perguntas. Todas elas se destinam a despertar na criança sua capacidade de testemunhar, isto é, a presença. E irão ajudá-la a deixar de se identificar com o corpo de dor. Na próxima vez em que ela for tomada por um ataque, eles poderão dizer: "Aquela coisa está de volta, não é?" O ideal é que eles usem as mesmas palavras empregadas pela criança na primeira ocasião em que falarem sobre o assunto. A atenção dela deve ser dirigida para como ela sente aquilo. Os pais têm que demonstrar interesse ou curiosidade em vez de adotar uma atitude crítica e condenatória.

  •  É improvável que isso venha a impedir que o corpo de dor continue seu curso, e pode parecer que a criança não está nem mesmo escutando os pais. Mesmo assim, alguma consciência permanecerá em segundo plano durante o período em que o corpo de dor estiver em atividade. Depois de alguns episódios, a consciência estará mais forte e o corpo de dor terá enfraquecido. É dessa forma que a criança vai intensificando seu estado de presença. Um dia, talvez seja ela que alerte o pai e a mãe de que eles se deixaram dominar pelo corpo de dor.

O retorno do corpo de dor

  • Sentei-me e pedi uma refeição. Havia poucos clientes no restaurante além de mim. Próximo à minha mesa, um homem de meia-idade numa cadeira de rodas acabava de jantar. Ele me dirigiu o olhar uma vez - foi rápido, mas intenso. Alguns minutos se passaram. De repente, ele ficou inquieto, agitado, seu corpo começou a se contrair. O garçom aproximou-se para retirar o prato. O homem começou a discutir com ele.
  •  - A comida não estava boa. Estava horrível. 
  •  Então por que o senhor comeu? - perguntou o garçom. 

  • Bastou essa frase para deixá-lo furioso. Ele começou a gritar, tornou-se ofensivo. Palavrões saíam da sua boca. Um rancor intenso, violento, encheu o ambiente. Era possível sentir aquela energia entrando no corpo das pessoas à procura de algo a que pudesse se fixar. Agora o homem esbravejava também com os outros clientes. No entanto, por uma estranha razão, me ignorava completamente enquanto eu permanecia sentado num intenso estado de presença. Desconfiei de que o corpo de dor humano universal havia retornado para me dizer: "Você pensou que tinha me derrotado. Veja, ainda estou aqui." Também considerei a possibilidade de que o campo energético liberado durante a sessão com aquela mulher me seguira até o restaurante e se prendera à única pessoa ali que apresentava uma freqüência vibracional compatível com a sua, isto é, um corpo de dor pesado. 

  •  O gerente abriu a porta do restaurante: "Por favor, retire-se, retire-se." O homem saiu zunindo na sua cadeira de rodas elétrica, deixando todos perplexos. Um minuto depois ele voltou. Seu corpo de dor ainda estava ativo. Precisava de mais. Ele escancarou a porta com a cadeira de rodas e começou a gritar obscenidades. Uma garçonete tentou impedi-lo de entrar. Ele acelerou a cadeira e imprensou a moça contra a parede. Alguns clientes acorreram para tentar puxá-lo dali. Gritos, berros, pandemônio. Um pouco depois chegou um policial. O homem sossegou, pediram-lhe que saísse e não voltasse mais. Por sorte, a garçonete não se feriu, sofreu apenas alguns arranhões na perna. Quando tudo acabou, o gerente aproximou-se da minha mesa e me perguntou, meio na brincadeira, mas talvez sentindo intuitivamente que havia alguma ligação: "Foi você que provocou tudo isso?"

A presença

  • Uma mulher na faixa dos 30 anos de idade veio se consultar comigo. Enquanto ela me cumprimentava, senti o sofrimento por trás do seu sorriso educado e superficial. Ela começou contando a história da sua vida e, um segundo depois, seu sorriso se tornou uma expressão de dor. Em seguida, começou a soluçar de maneira incontrolável. Disse que se sentia solitária e insatisfeita. Acalentava muita raiva e tristeza. Quando criança, fora vítima de maus tratos infligidos por um pai violento., Logo constatei que sua infelicidade não era causada pelas circunstâncias da sua vida atual, e sim por um corpo de dor muito pesado que se tornara o filtro através do qual ela analisava sua situação de vida. Essa mulher ainda não era capaz de detectar a ligação entre a dor emocional e seus pensamentos e estava identificada com ambos. Ela não conseguia ver que continuava aumentando o corpo de dor com seus pensamentos. Em outras palavras, vivia com o fardo de um eu profundamente infeliz. De algum modo, contudo, deve ter compreendido que a origem daquilo estava no seu próprio interior, que ela era uma carga para si mesma. E estava pronta para despertar - por esse motivo decidira ir àquela consulta.

  •  Direcionei o foco da sua atenção para o que estava se passando dentro do seu próprio corpo e lhe pedi que sentisse a emoção diretamente, que não usasse o filtro dos seus pensamentos infelizes, da sua história triste. Ela disse que esperava que eu lhe mostrasse o caminho para sair da infelicidade, e não para entrar nela. Porém, mesmo relutante, atendeu minha solicitação. As lágrimas rolavam por sua face, todo o seu corpo tremia. 
  •  - Neste momento, o que você sente é isto - eu disse. - E não há nada que você possa fazer nesse sentido. Mas, em vez de querer que este momento seja diferente do que ele é, o que lhe causa ainda mais sofrimento, consegue admitir completamente que isto é o que você está sentindo neste exato instante?

  •  Ela ficou calada por alguns segundos e depois respondeu com raiva: 
  •  - Não, não quero aceitar isso.
  •  - Quem está falando? - perguntei. - Você ou sua infelicidade?
  •  Consegue ver que sua infelicidade com o fato de ser uma pessoa triste é apenas outra camada de infelicidade? Mais uma vez ela se manteve calada. 
  •  Não estou lhe dizendo para fazer alguma coisa. Tudo o que estou pedindo é que descubra se tem condições de permitir que esses sentimentos permaneçam com você. Em outras palavras, e elas podem parecer estranhas: se você não se importar em ser infeliz, o que acontecerá com a infelicidade? Não quer descobrir? Por um instante ela pareceu confusa e ficou sentada ali em silêncio por um minuto mais ou menos. De repente, notei uma mudança significativa no seu campo energético. Depois respondeu: - Isto é esquisito. Ainda estou infeliz, mas agora existe um espaço em volta da minha infelicidade. Ela parece ter menos importância. Essa foi a primeira vez que ouvi alguém descrever a situação desta maneira: existe um espaço ao redor da minha infelicidade. Esse espaço, é claro, é criado quando há aceitação interior de qualquer coisa que estejamos sentindo no momento. Não falei muito depois disso para permitir que ela vivenciasse a experiência. Mais tarde, essa mulher compreendeu o que havia acontecido. No momento em que ela interrompeu a identificação com o sentimento, isto é, com a antiga emoção dolorosa que acalentava, no instante em que lhe dirigiu sua atenção sem tentar resistir, essa emoção deixou de ter a capacidade de controlar seu pensamento e, assim, de se misturar a uma história construída mentalmente chamada "Como Sou Infeliz". Outra dimensão havia se manifestado na sua vida e transcendia seu passado - a dimensão da presença. Como ninguém pode ser infeliz sem uma história triste, aquilo representava o término daquele sofrimento. E também o começo do fim do seu corpo de dor. A emoção em si não é infelicidade. Apenas a emoção associada a uma história triste é infelicidade.

  •  Depois de encerrada a sessão, foi gratificante saber que eu tinha acabado de testemunhar o surgimento da presença em alguém. A própria razão da nossa existência na forma humana é trazer essa dimensão de consciência para o mundo. Eu também assistira a uma diminuição do corpo de dor, e não lutando contra ele, mas levando-lhe a luz da consciência.

  •  Minutos depois que essa mulher saiu, recebi a visita de uma amiga. Assim que ela entrou na sala, perguntou: "O que aconteceu aqui? A energia parece pesada, sombria. Estou até me sentindo um pouco mal. Você precisa abrir as janelas, acender um incenso."

  •  Expliquei que eu tinha acabado de testemunhar uma im-portante liberação de energia numa pessoa que tinha o corpo de dor muito denso. Portanto, aquilo que ela estava sentindo devia ser o resto da energia que fora emanada durante a sessão. Minha amiga, porém, recusou-se a ficar e escutar. Tudo o que ela queria era sair dali o mais rápido possível. 

  •  Abri as janelas e saí para jantar num restaurante indiano nas redondezas. O que aconteceu enquanto permaneci ali foi uma confirmação adicional e muito clara do que eu já sabia: todos os corpos de dor humanos, que aparentemente são individuais, estão interligados em algum nível. No entanto, a forma que essa ratificação em particular assumiu foi uma espécie de choque.

A libertação

  • O começo da nossa libertação do corpo de dor está primeiramente na compreensão de que o temos. Depois, e mais importante, na nossa capacidade de permanecer presentes o bastante, isto é, atentos o suficiente, para percebê- lo como um pesado influxo de emoções negativas quando entra em atividade. No instante em que é reconhecido, ele não consegue mais se passar por nós e viver e se renovar por nosso intermédio.

  •  É nossa presença consciente que rompe a identificação com o corpo de dor. Quando não nos identificamos mais com ele, o corpo de dor torna-se incapaz de controlar nossos pensamentos e, assim, não consegue se renovar, pois deixa de se alimentar deles. Na maioria dos casos, ele não se dissipa imediatamente. No entanto, assim que desfazemos sua ligação com nosso pensamento, ele começa a perder energia. O pensamento pára de ser embotado pela emoção, enquanto nossas percepções do momento não são mais distorcidas pelo passado. A energia que estava presa no corpo de dor muda sua freqüência vibracional e é convertida em presença. Dessa maneira, o corpo de dor se torna combustível para a consciência. E por isso que muitas das pessoas mais sábias e iluminadas do planeta, entre homens e mulheres, já tiveram um corpo de dor bastante pesado. 

  • Independentemente do que dizemos ou fazemos e da face que mostramos ao mundo, nosso estado "mental-emocional" não pode ser dissimulado. Todo ser humano emana um campo energético que corresponde ao seu estado interior, e a maioria das pessoas é capaz de senti-lo, ainda que essa emanação de energia só seja captada de modo subliminar. Isso significa que, embora elas não saibam que percebem esse campo energético, ele determina em grande medida como elas se sentem em relação a um indivíduo e reagem a ele. Há quem tenha uma consciência mais clara do campo energético já no primeiro contato com alguém, até mesmo antes que quaisquer palavras sejam ditas. Um pouco depois, porém, as palavras dominam o relacionamento e, com elas, vêm os papéis que quase todos nós representamos. Com isso, a atenção se desloca para o âmbito da mente, e a capacidade de sentir o campo energético do outro se reduz de modo significativo. Mesmo assim, ele ainda é percebido no nível inconsciente. 

  •  Quando compreendemos que os corpos de dor buscam inconscientemente mais sofrimento, isto é, que eles querem que algo ruim aconteça, passamos a entender que muitos acidentes de trânsito são causados por motoristas cujo corpo de dor estava em atividade naquele momento. Sempre que dois motoristas com corpos de dor ativos chegam a um cruzamento ao mesmo tempo, a probabilidade de haver um acidente é bem maior do que em circunstâncias normais. De forma inconsciente, ambos desejam a colisão. O papel dos corpos de dor nesse tipo de ocorrência se torna mais óbvio no fenômeno chamado "briga de trânsito", quando os motoristas se tornam fisicamente violentos, em geral por causa de uma questão banal, como o fato de alguém dirigir muito devagar à sua frente. 

  • Muitos atos de violência são cometidos por pessoas "normais" que se transformam temporariamente em seres desequilibrados. Em julgamentos criminais em todas as partes do mundo, advogados de defesa costumam dizer frases como "Ele estava completamente fora de si", enquanto os acusados afirmam algo do tipo "Não sei o que deu em mim". Até onde eu sei, nenhum advogado de defesa forneceu a seguinte explicação ao juiz: "Este é um caso de responsabilidade reduzida. Meu cliente estava com o corpo de dor ativo, por isso não sabia o que estava fazendo. Na verdade, não foi ele que fez aquilo, e sim seu corpo de dor." Talvez não esteja longe o dia em que coisas assim comecem a ser ouvidas nos tribunais. 

  •  Será que isso significa que as pessoas não são responsáveis por seus atos quando estão possuídas pelo corpo de dor? Minha resposta é: como podem ser? Como é possível alguém responder por suas atitudes se está inconsciente, se não sabe o que está fazendo? No entanto, no quadro mais amplo das coisas, os seres humanos devem evoluir como seres conscientes, e os que não seguem esse caminho sofrem as conseqüências da sua inconsciência. Eles não estão alinhados com o impulso evolucionário do universo.

  •  E até mesmo essa afirmação só é verdadeira em parte. De uma perspectiva superior, é impossível não estar alinhado com a evolução do universo. Até mesmo a inconsciência humana e a dor que ela produz fazem parte desse progresso. Quando não conseguimos mais suportar o ciclo interminável de sofrimento, começamos a despertar. Portanto, o corpo de dor também ocupa um lugar necessário no quadro mais amplo.