quinta-feira, 7 de novembro de 2013

No universo exterior assim como no universo interior



  • Ao erguer os olhos para o céu claro à noite, você pode compreender com a maior facilidade uma verdade que é ao mesmo tempo simples e extraordinariamente profunda. O que é que você vê lá em cima? A Lua, os planetas, as estrelas, a faixa luminosa da Via Láctea, quem sabe um cometa ou até mesmo a vizinha Galáxia de Andrômeda a 2 milhões de anos-luz. Sim, mas, simplificando ainda mais, o que você vê? Objetos flutuando no espaço. Então, o que forma o universo? Objetos e espaço.

  •  Se você não fica sem palavras ao voltar seus olhos para o céu numa noite clara, então não o está observando de verdade, não está consciente da totalidade do que há ali. Provavelmente, está focalizando apenas os objetos e talvez tentando nomeá-los. Caso alguma vez você tenha se maravilhado ao olhar para o espaço -e talvez até sentido um profundo respeito diante desse mistério incompreensível -, isso mostra que abandonou por um momento seu desejo de explicar e rotular e se tornou consciente não só dos objetos como da profundidade infinita do espaço em si mesmo. Deve ter permanecido silencioso o bastante em seu interior para notar a vastidão em que esses mundos incontáveis existem. O sentimento de admiração não decorre do fato de que há bilhões de mundos ali, mas da profundidade que contém todos eles.

  •  Não conseguimos ver o espaço, é claro. Também não podemos ouvi-lo, tocá-lo nem sentir seu gosto e seu cheiro. Então, como somos capazes de saber que ele existe? Essa pergunta aparentemente lógica contém um erro fundamental. A essência do espaço é a imaterialidade, portanto ele não "existe" no sentido convencional da palavra. Apenas as coisas - formas - existem. Até mesmo chamá-lo de espaço pode ser enganador porque, ao nomeá-lo, nós o transformamos num objeto. 

  •  Vamos considerar da seguinte maneira: existe algo dentro de nós que tem afinidade com o espaço, e é por isso que somos capazes de ter consciência dele. Consciência dele? Isso não é totalmente verdadeiro também porque, como podemos ter consciência do espaço se não existe nada lá de que possamos ter consciência?

  •  A resposta é ao mesmo tempo simples e profunda. Quando estamos conscientes do espaço, não estamos de fato conscientes de nada, a não ser da consciência em si - do espaço interior da consciência. Por nosso intermédio, o universo vai se tornando consciente de si mesmo! 

  •  Quando o olho não encontra nada para ver, essa imaterialidade é entendida como espaço. Quando os ouvidos não encontram nada para escutar, essa imaterialidade é compreendida como silêncio. Quando os sentidos, que existem para perceber a forma, encontram a ausência da forma, a consciência sem forma que está por trás da percepção e torna possível toda percepção, toda experiência, não é mais obscurecida pela forma. Quando contemplamos as profundezas insondáveis do espaço ou escutamos o silêncio nas primeiras horas do dia logo após o nascer do Sol, alguma coisa dentro de nós faz eco a isso como um reconhecimento. Então sentimos a enorme profundidade do espaço como nossa e sabemos que esse precioso silêncio que não tem forma é mais essencialmente nós mesmos do que qualquer das coisas que formam o conteúdo da nossa vida.

  •  Os Upanixades, os antigos textos sagrados da índia, referem-se a essa mesma verdade com as seguintes palavras:

  •  O que não pode ser visto pelos olhos, mas por meio do qual os olhos podem ver, é unicamente Brama, o Espírito, e não o que as pessoas aqui adoram. O que não pode ser escutado pelos ouvidos, mas por meio do qual os ouvidos são capazes de ouvir, é unicamente Brama, o Espírito, e não o que as pessoas aqui adoram... Aquilo que não pode ser compreendido pela mente, mas por meio do qual a mente consegue pensar, é conhecido unicamente como Brama, o Espírito, e não o que as pessoas aqui adoram.7

  •  Deus, diz o texto sagrado, é a consciência sem forma e a essência de quem nós somos. Tudo o mais é forma, é "o que as pessoas aqui adoram".

  •  A realidade duplicada do universo, que consiste em objetos e espaço - materialidade e imaterialidade -, é igual à nossa. Uma vida humana sadia, equilibrada e produtiva é uma dança entre as duas dimensões que constituem a realidade: forma e espaço. A maioria das pessoas se identifica tanto com a dimensão da forma, com as percepções sensoriais, com os pensamentos e com as emoções, que a parte oculta essencial quase desaparece da sua vida. A identificação com a forma as mantém presas ao ego. 

  •  Aquilo sobre o que pensamos a respeito, vemos, ouvimos, sentimos ou tocamos é apenas a metade da realidade, por assim dizer. E a forma. Nos ensinamentos de Jesus, isso é chamado simplesmente de "o mundo", enquanto a outra dimensão é "o reino dos Céus ou a vida eterna". 

  •  Assim como o espaço permite que todas as coisas existam e assim como não poderia haver som sem o silêncio, nós não existiríamos sem a dimensão essencial sem forma que é a nossa essência. Poderíamos chamá-la de "Deus", caso essa palavra não estivesse tão desgastada pelo uso. Prefiro denominá-la Ser. O Ser é anterior à existência. A existência é forma, conteúdo, "o que acontece". A existência é o primeiro plano da vida, enquanto o Ser é uma espécie de pano de fundo. 

  •  A doença coletiva da humanidade é o fato de as pessoas estarem tão absorvidas pelo que acontece, tão hipnotizadas pelo mundo das formas em constante mutação, tão mergulhadas no conteúdo da sua vida, que se esquecem da essência, daquilo que está além do conteúdo, da forma e do pensamento. Elas se encontram de tal maneira consumidas pelo tempo que se esquecem da eternidade, que é sua origem, seu lar, seu destino. Eternidade é viver a realidade de quem nós somos.

  •  Anos atrás, quando estive na China, visitei um monumento no alto de uma montanha próxima a Guilin. Nele havia uma inscrição gravada com ouro. Perguntei ao guia chinês o que estava escrito ali. - 
  • Está escrito "Buda" - disse ele.
  •  - Por que há dois ideogramas gravados em vez de um? - quis saber.
  •  Um significa "homem". O outro significa "não". E os dois juntos significam "Buda" - explicou. 

  •  Fiquei ali parado completamente perplexo. O ideograma correspondente a Buda já continha todo o ensinamento do mestre. E, para um bom entendedor, o segredo da vida. Ali estão as duas dimensões que constituem a realidade - materialidade e imaterialidade, forma e negação da forma - o que é um reconhecimento de que a forma não é quem nós somos.

Permitindo a diminuição do ego

  • O ego está sempre atento a qualquer tipo de diminuição que ele perceba. Seus mecanismos automáticos de reparo entram em ação para restaurar a forma mental relativa a "mim". Quando alguém nos culpa ou censura, ele tenta corrigir no ato essa sensação de diminuição do eu se justificando, se defendendo ou acusando. Se a outra pessoa está certa ou errada, isso é algo irrelevante para o ego, que está muito mais interessado na preservação de si mesmo do que na verdade. Até mesmo um comportamento tão corriqueiro quanto responder gritando quando outro motorista nos chama de "barbeiro" é um procedimento de reparo automático e inconsciente utilizado por ele. Outro mecanismo bastante comum é a raiva, que faz o ego inflar temporariamente, mas de forma intensa. Todos os recursos que o ego usa para executar os "consertos" fazem total sentido para ele, porém, na verdade, são disfunções. Os que representam os distúrbios mais extremos são a violência física e as ilusões na forma de fantasias grandiosas.

  •  Uma técnica espiritual eficaz é permitir conscientemente a diminuição do ego quando ela acontecer e não tomar nenhuma iniciativa para restaurá-lo. Recomendo a você que realize um teste de vez em quando. Por exemplo, quando alguém lhe dirigir críticas, censuras ou xingamentos, em vez de revidar no ato ou se defender, não faça nada. Deixe que sua auto-imagem permaneça diminuída e fique atento ao que isso desperta no seu interior. Por alguns segundos, pode parecer desagradável, como se seu corpo tivesse encolhido. Depois, talvez você experimente uma viva sensação de amplitude interior. Você não foi diminuído nem um pouco. Na verdade, se expandiu. E provável, então, que chegue a uma conclusão impressionante: quando parece que você é diminuído de alguma maneira e não adota nenhuma reação - nem externa nem interna -, compreende que nada real foi reduzido e que, tornando-se "menos", se transforma em mais. Quando deixa de se defender ou de tentar fortalecer a forma do seu eu, você se afasta da identificação com a forma, com sua auto- imagem mental. Por admitir ser menos (na percepção do ego), na verdade você passa por uma expansão e cria espaço para o Ser entrar. O verdadeiro poder, aquilo que você é além da forma, pode então brilhar através da forma aparentemente enfraquecida. Esse foi o sentido das palavras de Jesus quando ele disse: "Negue a si mesmo" ou "Ofereça a outra face". 

  •  Isso não significa, é claro, que você deva suportar maus tratos nem se converter numa vítima de pessoas inconscientes. Algumas vezes, uma situação pode exigir que você diga a alguém para "sair de perto" de modo bem claro. Sem a atitude defensiva do ego, haverá poder por trás das suas palavras e nenhuma força de reação. Se necessário, pode também dizer não a alguém com toda a firmeza e convicção, e isso será o que eu chamo de "um não de alta qualidade", que é livre de todo negativismo.

  •  Se você está contente com o fato de não ser ninguém em particular, de não estar em evidência, se alinhará com o poder do universo. O que se parece com fraqueza para o ego é, na realidade, força verdadeira. Essa verdade espiritual é essencialmente oposta aos valores da nossa cultura contemporânea e à maneira como as pessoas são condicionadas a se comportar. 

  •  Em vez de tentar ser uma montanha, ensina o Tao Te Ching, "seja o vale do universo".4 Dessa maneira, estará reintegrado à totalidade e assim "todas as coisas acontecerão a você".5 

  •  De modo semelhante, Jesus ensina numa das suas parábolas:
  •  "Mas, quando fores convidado, vai tomar o último lugar, para que, quando vier o que te convidou, te diga: Amigo, passa mais para cima. Então serás honrado na presença de todos os convivas. Porque todo aquele que se exaltar será humilhado, e todo aquele que se humilhar será exaltado."6 

  •  Outro aspecto dessa técnica é evitar as tentativas de fortalecer seu eu se exibindo, procurando aparecer, querendo ser especial, causando impressão ou exigindo atenção. De vez em quando, pode ser o caso de você se conter e não manifestar sua opinião num momento em que todos estão expressando as próprias idéias. Depois, observe como se sente a respeito.

A Alegria do Ser

  • A infelicidade, ou negativismo, é uma doença no nosso planeta. O que a poluição é no plano exterior o negativismo é no plano interior. Ele está em toda parte, e não apenas nos lugares onde as pessoas não possuem o bastante para viver. E até se acentua onde os indivíduos têm mais do que o suficiente. Isso é uma surpresa? Não. O mundo da riqueza está identificado com a forma de um modo muito mais profundo, está mais perdido no conteúdo, mais preso ao ego.

  •  As pessoas acreditam que dependem dos eventos para serem felizes, isto é, que são dependentes da forma. Não percebem que o que acontece é a coisa mais instável do universo. Isso muda constantemente. Para elas, o momento presente encontra-se prejudicado tanto por um fato que aconteceu e que não deveria ter acontecido quanto por algo que não ocorreu, mas que deveria ocorrer. E assim perdem a perfeição mais profunda que é inerente à vida em si, aquela que está sempre aqui, que existe a despeito do que está acontecendo ou não, que está além da forma. Portanto, aceitando o momento presente, descobrimos uma perfeição que é maior do que qualquer forma e intocada pelo tempo.

  •  A alegria do Ser, que é a única felicidade verdadeira, não pode nos acontecer por meio de nenhum tipo de forma, bem material, realização, pessoa, fato, isto é, por intermédio de nada que ocorra. A alegria não acontece para nós - nunca. Ela emana da dimensão sem forma em nosso interior, da consciência em si, portanto é una com quem nós somos.

Superando a limitação

  • Surge um momento na vida de cada um de nós em que perseguimos o crescimento e a expansão no nível da forma. Isso acontece quando nos esforçamos para superar limitações, como fraqueza física ou carência financeira, quando adquirimos novas habilidades e ampliamos nossos conhecimentos ou quando, por meio de uma ação criativa, trazemos ao mundo algo diferente que tenha a capacidade de melhorar tanto nossa vida quanto a dos outros. Pode ser uma composição musical, uma obra de arte, um livro, um serviço que prestamos, uma função que desempenhamos e ainda uma organização que criamos ou para a qual destinamos uma contribuição essencial.

  •  Sempre que estamos presentes, isto é, toda vez que nossa atenção está toda no Agora, essa presença flui para aquilo que fazemos e o transforma. Há qualidade e poder no que executamos. Estamos presentes quando o que realizamos não é basicamente um meio para atingir um fim (dinheiro, prestígio, vitória), mas gratificante por si mesmo; quando existe alegria e vida no que realizamos. E, é claro, não podemos estar presentes a menos que nos tornemos receptivos ao Agora. Essa é a base da ação eficaz, não contaminada pelo negativismo.

  •  Forma significa limitação. Estamos aqui não só para vivenciar as limitações como para ampliar nossa consciência por meio da superação das coisas que nos restringem. Algumas delas podem ser ultrapassadas num nível externo. Mas talvez haja outras com as quais precisemos aprender a conviver - só conseguiremos vencê-las internamente. Mais cedo ou mais tarde, todas as pessoas as encontram. Da mesma maneira que as limitações podem nos manter presos à reação egóica, que corresponde à infelicidade intensa, nós somos capazes de sobrepujá-las no nível interno nos rendendo de modo incondicional ao que quer que elas sejam. É isso que elas nos ensinam. O estado de rendição da consciência abre a dimensão vertical na nossa vida, a dimensão da profundidade. Alguma coisa sairá dali para o mundo, algo de um valor infinito que, de outro modo, teria permanecido sem se manifestar. Algumas pessoas que se entregaram a uma limitação significativa se tornaram agentes de cura ou mestres espirituais. Outras trabalham com abnegação para minorar o sofrimento humano ou compartilhando um dom criativo.

  •  No final da década de 1970, eu almoçava todos os dias com um ou dois amigos no restaurante do centro de graduação da Universidade de Cambridge, onde estudava. Havia um homem numa cadeira de rodas que algumas vezes se sentava próximo a nós, em geral acompanhado de três ou quatro pessoas. Um dia, quando ele estava sentado à mesa diretamente oposta à minha, não pude deixar de observá-lo com mais atenção e fiquei chocado com o que vi. Seu corpo parecia quase todo paralisado. Magro ao extremo, a cabeça pendendo para frente. Um de seus acompanhantes colocava a comida na sua boca com todo o cuidado, porém uma grande parte dela sempre caía de volta no pratinho que outra pessoa segurava embaixo do queixo dele. De vez em quando, o homem emitia sons roucos ininteligíveis. Então alguém aproximava o ouvido da sua boca e, de forma incrível, interpretava o que ele estava tentando dizer.

  •  Mais tarde, perguntei ao meu amigo se ele sabia quem era aquele homem. "Claro que sei. É um professor de matemática. As pessoas que o acompanham são seus alunos de graduação. Ele tem uma doença degenerativa que paralisa progressivamente todos os músculos do corpo. Viverá no máximo uns cinco anos. Essa deve ser uma das mais terríveis fatalidades que podem recair sobre um ser humano."

  •  Poucas semanas depois, eu estava saindo do prédio enquanto ele estava entrando. No momento em que segurei a porta para que a cadeira de rodas elétrica pudesse passar, nossos olhares se cruzaram. Com surpresa, vi que os olhos dele estavam límpidos. Não mostravam nenhum sinal de infelicidade. Percebi no ato que aquele homem havia abandonado a resistência - estava vivendo no estado de rendição. 

  •  Anos depois, enquanto comprava um jornal numa banca, fiquei impressionado ao vê-lo na primeira página de uma renomada revista internacional. Ele não só continuava vivo como tinha se tornado o mais célebre físico teórico do mundo, Stephen Hawking. Havia uma bela frase no artigo que confirmava o que eu sentira quando nossos olhos se cruzaram muitos anos antes. Comentando a própria vida, ele disse (agora por meio de um sintetizador de voz): "Quem poderia querer mais?"

O sonho e aquele que sonha


  • A chave para o poder maior do universo é a não-resistência. Por meio dela, a consciência (espírito) é liberada do seu aprisionamento na forma. A não-resistência interior à forma - a qualquer coisa ou acontecimento - é uma negação da realidade absoluta da forma. A resistência faz com que o mundo e seus elementos pareçam mais reais, mais concretos e mais duradouros do que eles são, incluindo nossa própria identidade formal, o ego. Ela atribui ao mundo e ao ego um peso e uma importância tão grandes que isso nos faz levar tudo muito a sério, até nós mesmos. O teatro criado pela forma é então erroneamente percebido como uma luta pela sobrevivência. E, quando temos essa percepção, ela se torna nossa realidade. 

  •  As muitas coisas que acontecem, as numerosas formas que a vida assume, são de natureza efêmera. Todas elas são fugazes. Coisas, corpos e egos, acontecimentos, situações, pensamentos, emoções, desejos, ambições, medos, conflitos... eles surgem, fingem ser da maior importância, e, antes que possamos conhecê-los, já se foram, dissolvidos na imaterialidade da qual vieram. Será que chegaram a ser reais? Será que conseguiram ser mais do que um sonho, o sonho da forma?

  •  Quando acordamos de manhã e o sonho da noite se dispersa, dizemos: "Ah, foi apenas um sonho. Não era real." Mas algo no sonho deve ter sido real, caso contrário não poderia ter acontecido. Quando a morte se aproxima, podemos olhar para trás e imaginar se nossa vida não foi simplesmente mais um sonho. Até mesmo agora podemos relembrar as férias do ano passado ou a briga da véspera e ver que são muito semelhantes ao sonho da noite anterior.

  •  O sonho existe, assim como existe aquele que sonha. O sonho é uma encenação de curta duração das formas. É o mundo - real apenas de modo relativo, e não absoluto. E há aquele que sonha. Ele é a realidade absoluta na qual as formas vêm e vão, mas não é a pessoa. A pessoa é parte do sonho. Aquele que sonha é o substrato em que o sonho aparece, aquilo que o torna possível. É o absoluto por trás do relativo, o eterno por trás do tempo, a consciência dentro da forma e por trás dela. Aquele que sonha é a consciência em si mesma - é quem nós somos.

  •  Acordar dentro do sonho é nosso propósito agora. Quando estamos despertos dentro do sonho, o conflito criado pelo ego neste mundo chega ao fim enquanto um sonho mais benigno e maravilhoso surge. Essa é a nova Terra.

Eliminando o tempo

  • Não podemos transformar nossa libertação do ego numa meta futura e depois tentar alcançá-la. Tudo o que obtemos com isso é uma insatisfação maior, mais conflito interior, porque sempre vai parecer que ainda não conseguimos chegar lá, que ainda não "atingimos" esse estado. Quando estabelecemos a liberdade do ego como nosso propósito futuro, nós nos damos mais tempo, e mais tempo corresponde a mais ego. Devemos observar com cuidado para ver se nossa busca espiritual é uma forma disfarçada de ego. Até mesmo a tentativa de nos livrarmos do "eu" pode ser uma procura mascarada por mais tempo se essa libertação for transformada num objetivo futuro. Dar mais tempo a nós mesmos é exatamente isto: conceder mais tempo ao "eu". O tempo, ou seja, o passado e o futuro, é aquilo de que o falso eu fabricado pela mente, o ego, vive. E o tempo está na nossa mente. Ele não é algo que tenha uma existência objetiva "ali fora". É uma estrutura mental necessária para a percepção sensorial, indispensável pelos propósitos práticos, mas também é o maior obstáculo ao autoconhecimento. O tempo é a dimensão horizontal da vida, a camada superficial da realidade. E há ainda a dimensão vertical da profundidade, à qual só temos acesso através do portal do momento presente. 

  •  Assim, em vez de nos concedermos tempo, devemos removê-lo. Retirar o tempo da nossa consciência é eliminar o ego. É a única prática espiritual verdadeira.

  •  Quando falo da eliminação do tempo, não estou, é claro, me referindo ao tempo do relógio, que é usado com propósitos práticos, como marcar um encontro ou planejar uma viagem. Seria quase impossível atuar neste mundo sem esse tempo convencional. O que estou propondo é a eliminação do tempo psicológico, que é a preocupação interminável da mente egóica com o passado e com o futuro e sua resistência a entrar num estado de unicidade com a vida e viver alinhada com a inevitável condição do momento presente de ser o que é. 

  •  Sempre que um não habitual à vida se transforma num sim, toda vez que permitimos que esse momento seja como ele é, dissolvemos tanto o tempo quanto o ego. Para que o ego sobreviva, ele deve tornar o tempo - o passado e o futuro - mais importante do que o momento presente. Para o ego, é impossível ser amistoso com o Agora, a não ser por um breve instante logo após obter o que deseja. Contudo, nada consegue satisfazê-lo por muito tempo. Assim que ele se converte na nossa vida, existem duas maneiras de sermos infelizes. Não alcançarmos o que desejamos é uma. Alcançarmos o que desejamos é a outra. 

  •  O Agora assume a forma de qualquer coisa ou acontecimento. Enquanto resistimos a isso internamente, a forma, isto é, o mundo, é uma barreira impenetrável que nos separa de quem somos além da forma, que nos afasta da Vida única sem forma que nós somos. Quando dizemos um sim interior para a forma que o Agora adquire, ela própria se torna uma passagem para o que não tem forma. A separação entre o mundo e Deus se dissolve.

  •  Quando reagimos à forma que a Vida assume no momento presente, tratando o Agora como um meio, um obstáculo ou um inimigo, fortalecemos nossa própria identidade formal, o ego. Disso resulta a atitude reativa do ego. Ele se vicia em reagir. Quanto maior nossa disposição para manifestar uma reação, mais vinculados nos tornamos à forma. Quanto maior a identificação com ela, mais forte é o ego. Nosso Ser então deixa de brilhar através da forma - ou só faz isso vagamente. 

  •  Por meio da não-resistência à forma, aquilo em nós que se encontra além da forma emerge como uma presença de total abrangência, um poder silencioso muito maior do que a identidade de curta duração que temos na forma - a pessoa. Ele é mais profundamente quem nós somos do que qualquer outra coisa no mundo da forma.

O paradoxo do tempo

  • Na superfície, o momento presente é "o que acontece". Uma vez que os eventos mudam sem parar, parece que cada dia da nossa vida é formado por milhares de momentos em que coisas diferentes ocorrem. O tempo é considerado uma sucessão interminável de momentos - alguns "bons", outros "maus". Ainda assim, se observarmos mais de perto, isto é, por meio da nossa sensação pessoal imediata, veremos que, na verdade, não há muitos momentos, mas somente este momento. A vida é sempre o Agora. Toda a nossa vida se desenrola nesse constante Agora. Até mesmo os momentos do passado e do futuro só existem quando nos lembramos deles ou os antecipamos. E fazemos isso pensando sobre eles no único momento que existe: este.

  •  Então, por que parece que há muitos momentos? Porque o momento presente se confunde com o que acontece, com o conteúdo. O espaço do Agora se embaralha com o que ocorre nesse espaço. A mistura do momento presente com o conteúdo faz surgir não só a ilusão do tempo como a ilusão do ego.

  •  Existe um paradoxo nesse caso. Por um lado, como podemos negar a realidade do tempo? Precisamos dele para ir de um lugar a outro, preparar uma refeição, comprar uma casa, ler um livro. Necessitamos dele para crescer, para aprender novas coisas. Qualquer coisa que façamos parece tomar tempo. Tudo está sujeito a ele e, no fim das contas, "esse maldito tempo tirano", como diria Shakespeare, acabará nos matando. Poderíamos compará-lo a um rio revolto que nos carrega em suas águas ou a um fogo incontrolável que a tudo consome.

  •  Certa vez, encontrei-me com velhos amigos, uma família com a qual eu perdera o contato havia muito tempo, e fiquei chocado quando os vi. Quase perguntei: "Vocês estão doentes? O que aconteceu? Quem fez isso com vocês?" A mãe, que andava apoiada numa bengala, parecia ter encolhido, o rosto todo enrugado. A filha, que cheguei a ver cheia de energia e entusiasmo, animada pelas expectativas da juventude, agora parecia cansada, esgotada, depois de criar três filhos. Então me lembrei: quase 30 anos tinham se passado desde nosso último encontro. O tempo havia feito aquilo com eles. E tenho certeza de que meus amigos ficaram igualmente chocados quando me viram. 

  • Tudo parece estar sujeito ao tempo, ainda assim tudo acontece no Agora. Esse é o paradoxo. Sempre vemos um grande número de evidências circunstanciais para a realidade do tempo, como uma maçã murcha, nosso rosto no espelho comparado à nossa aparência numa fotografia tirada 30 anos antes - porém, nunca encontramos uma evidência direta, jamais vivenciamos o tempo em si. A experiência que temos invariavelmente é a do momento presente, ou melhor, do que ocorre nele. Se nos basearmos apenas nas evidências diretas, então o tempo não existe, e o Agora é tudo o que existe, sempre.

O ego e o momento presente

  • O relacionamento primordial da nossa vida é aquele que mantemos com o Agora ou com qualquer forma que ele assuma, isto é, com aquilo que é ou que acontece. Se houver um distúrbio na relação que temos com o Agora, ele se refletirá em todos os relacionamentos e em todas as situações que encontrarmos. O ego pode ser definido simplesmente assim: um relacionamento desajustado com o momento presente. Mas podemos decidir que tipo de relação queremos estabelecer com o momento presente.

  •  Depois que alcançamos certo grau de consciência (e, se você está lendo isto, quase certamente o atingiu), somos capazes de escolher que espécie de relacionamento desejamos travar com o momento presente. Pretendemos tê- lo como amigo ou inimigo? O momento presente é inseparável da vida, portanto, na verdade, estamos decidindo que tipo de relacionamento queremos ter com a vida. Uma vez que tenhamos optado por torná-lo nosso amigo, depende de nós dar o primeiro passo: devemos ser amistosos com ele, recebê-lo bem, não importa que disfarce apresente, e logo veremos os resultados. Com isso, a vida passa a ser mais amigável em relação a nós, as pessoas se mostram prestativas, as circunstâncias nos favorecem. Uma decisão muda toda a nossa realidade. No entanto, precisamos fazer essa escolha o tempo todo, sem parar - até que viver dessa maneira seja algo natural para nós.

  •  A decisão de converter o momento presente em nosso amigo é o fim do ego. Para o ego, é impossível estar alinhado com o momento presente, isto é, com a vida, pois sua própria natureza 0 impele a ignorar e desvalorizar o Agora ou resistir a ele. O ego vive do tempo e, quanto mais forte ele é, mais o tempo controla nossa vida. Assim, quase todos os nossos pensamentos expressam uma preocupação com o passado ou com o futuro, enquanto nosso sentido de eu depende do passado para nossa identidade e do futuro para preenchê-la. Medo, ansiedade, expectativa, arrependimento, culpa, raiva são as disfunções do estado de consciência atado ao tempo. 

  •  O ego trata o momento presente de três maneiras: como um meio para alcançar um fim, um obstáculo ou um inimigo. Vamos observar cada um desses padrões individualmente para que possamos reconhecer qual deles está operando em nós e... decidir mais uma vez. 

  •  Na melhor das hipóteses, para o ego, o momento presente é útil apenas como um meio para alcançar um fim. Ele nos leva a algum ponto no futuro que é considerado mais importante, embora o futuro nunca chegue, a não ser como o momento presente -portanto, ele nunca passa de um pensamento na nossa cabeça. Em outras palavras, jamais permanecemos plenamente aqui porque estamos sempre ocupados tentando chegar a algum lugar.

  •  Quando esse padrão se torna mais pronunciado, e isso é bastante comum, o momento presente é considerado um obstáculo a ser superado e é tratado como tal. Então surgem a impaciência, a frustração e a tensão permanente. Na nossa cultura, essa é a realidade cotidiana de muitas pessoas, seu estado normal. A vida, que é agora, é vista como um "problema", e nós passamos a habitar um mundo de obstáculos que precisam ser resolvidos antes que possamos ficar felizes, satisfeitos e realmente começar a viver - ou pelo menos é nisso que acreditamos. Porém, a questão é a seguinte: para cada dificuldade que solucionamos, outra surge do nada. Uma vez que o momento presente é encarado como um problema, os transtornos podem não ter fim. "Eu serei qualquer coisa que você queira que eu seja", diz a Vida, ou o Agora. "Vou tratá-lo do modo como você me trata. Se você me vê como um estorvo, eu serei um estorvo para você. Se me trata como um empecilho, serei um empecilho."

  •  Na pior das hipóteses, e isso também é muito comum, o momento presente é tratado como um inimigo. Se odiamos o que estamos fazendo, reclamamos do ambiente onde nos encontramos, amaldiçoamos as coisas que estão acontecendo ou aconteceram ou se nosso diálogo interior consiste no que deveria ser e no que não deveria ser, em culpar e acusar, é porque estamos discutindo com o que é, com o que já é como tem que ser. Estamos convertendo a Vida num inimigo, e a ela diz: "Como a guerra é o que você quer, a guerra é o que terá." A realidade exterior, que sempre reflete para nós o estado em que nos encontramos interiormente, é então sentida como hostil.

  •  Uma pergunta essencial que devemos nos fazer com freqüência é: qual é meu relacionamento com o momento presente? Depois, precisamos ficar atentos para descobrir a resposta. "Será que estou tratando o Agora como um simples meio para alcançar um fim? Será que o vejo como um obstáculo? Será que o estou transformando num inimigo?" Como o momento presente é tudo o que sempre temos, uma vez que a Vida é inseparável do Agora, o verdadeiro significado daquela pergunta é: qual é meu relacionamento com a vida? Essa indagação é uma maneira excelente de desmascararmos o ego dentro de nós e avançarmos para o estado de presença. Embora ela não incorpore a verdade absoluta (em última análise, nós e o momento presente somos uma coisa só), é um indicador útil que nos coloca na direção certa. Pergunte isso a si mesmo até que não considere mais necessário.

  •  Sabe como você pode superar a disfunção no seu relacionamento com o momento presente? A coisa mais importante é detectá-la em si mesmo, nos seus pensamentos e nas suas ações. No instante em que vê que há um distúrbio na sua relação com o Agora, você está presente. Essa visão assinala o surgimento da presença. Nesse instante, a disfunção começa a se dissipar. Algumas pessoas riem muito quando observam isso. Com a visão surge o poder da escolha - a decisão de dizer sim ao Agora, de torná-lo seu amigo.

É mesmo?

  • O mestre zen Hakuin morava numa cidade no interior do Japão. Altamente estimado e respeitado, era procurado por muitas pessoas que buscavam orientação espiritual. Então aconteceu que a filha adolescente do seu vizinho apareceu grávida. Quando os pais da moça, tomados de ira e revolta, a interrogaram sobre a identidade do pai da criança, ela acabou dizendo que era Hakuin. Transtornados de raiva, eles foram correndo até o mestre zen e, entre gritos e acusações, contaram-lhe que a filha havia confessado que ele a engravidara. Tudo o que ele disse foi:

  •  - É mesmo? 

  •  As notícias sobre o escândalo espalharam-se por toda a cidade e fora dela. O mestre perdeu sua reputação. Isso não o preocupou. As pessoas deixaram de procurá-lo. Ele não se importou com isso também. Quando a criança nasceu, os avós a levaram para Hakuin.

  •  - Você é o pai, então cuide dela.

  •  O mestre cuidou do bebê com o maior carinho. Um ano depois, a mãe, consumida pelo remorso, confessou aos pais que o verdadeiro pai da criança era o rapaz que trabalhava no açougue. Profundamente constrangidos, eles foram procurar Hakuin para se desculpar e pedir seu perdão. 

  • Sentimos muito. Viemos buscar o bebê. Nossa filha confessou que você não é o pai dele. 

  •  É mesmo? o mestre se limitou a dizer enquanto lhes entregava a criança.

  • Hakuin responde à falsidade e à verdade, à boa e à má notícia, exatamente da mesma maneira: "É mesmo?" Ele permite que a forma do momento, positiva ou negativa, seja como ela é e, assim, não se torna um participante do drama humano. Para Hakuin, existe apenas o momento, que sempre é como é. Os acontecimentos não são personalizados. Ele não é vítima de ninguém. Dessa maneira, alcança tal unicidade com o que acontece que os eventos deixam de ter poder sobre ele. Somente quando resistimos ao que ocorre é que ficamos à mercê dos acontecimentos e o mundo determina nossa felicidade ou infelicidade. 

  •  O bebê foi cuidado com muito carinho. O mal converteu-se no bem por meio do poder da não-resistência. Sempre respondendo ao que o momento presente requer, Hakuin deixou o bebê ir quando chegou a hora de fazer isso.

  •  Imagine rapidamente como o ego teria reagido durante os vários estágios desse acontecimento.

Sem nos importarmos com o que acontece

  • J. Krishnamurti, o maior filósofo e mestre espiritual indiano, proferiu palestras e trabalhou quase continuamente por todo o mundo durante mais de 50 anos, tentando transmitir por meio das palavras - que representam o conteúdo - o que está além delas, além do conteúdo. Numa de suas apresentações, já no final da vida, ele surpreendeu o público perguntando: "Vocês querem conhecer meu segredo?"

  •  Todos os presentes ficaram atentos. Muitas pessoas na platéia vinham acompanhando suas palestras ao longo de 20 ou 30 anos e ainda não haviam conseguido captar a essência do seu ensinamento. Por fim, depois de todos aqueles anos, o mestre lhes daria a chave para a compreensão: "Este é o meu segredo: eu não me importo com o que acontece", disse ele. 

  •  Como ele não explicou mais nada, desconfio de que a maior parte do seu público ficou ainda mais perplexa do que antes. As implicações dessa simples afirmação, entretanto, eram profundas.

  •  O que está implícito quando dizemos que não nos importamos com o que acontece? Simplesmente que, no nosso interior, estamos alinhados com o que acontece. "O que acontece" refere-se, é claro, à especificidade do momento, que sempre é como é. Trata-se de uma menção ao conteúdo, à forma que esse momento assume. Estarmos alinhados com o que é significa estarmos numa relação de não-resistência interna com os acontecimentos. Isso corresponde a não rotular essa realidade mentalmente como boa nem má, e sim deixá-la ser o que é. Isso quer dizer que não podemos mais agir para provocar mudanças na nossa vida? Ao contrário. Quando a base para nossas ações é o alinhamento interior com o momento presente, elas se tornam fortalecidas pela inteligência da Vida em si.

O que há de bom e o que há de mau

  • A certa altura da vida, a maioria das pessoas se torna consciente de que não existem apenas nascimento, crescimento, sucesso, boa saúde, prazer e vitórias, mas também perda, fracasso, doença, envelhecimento, decadência, dor e morte. Convencionalmente, esses aspectos são rotulados de "bons" e "maus", ordem e desordem. O "significado" da nossa vida costuma estar associado ao que consideramos "bom", porém tudo o que se enquadra nessa categoria está sob a ameaça constante do colapso, do esgotamento, da desorganização, da falta de significado e do "mau" - que é quando as explicações falham e a vida deixa de fazer sentido. Mais cedo ou mais tarde, a desordem irrompe na vida de todo mundo, não importa quantas apólices de seguro a pessoa tenha. Isso pode acontecer na forma de perda ou acidente, doença, incapacidade, envelhecimento, morte. Contudo, o surgimento dessa desestabilização e o resultante colapso de um sentido definido mentalmente podem se tornar a abertura para uma ordem superior.

  •  "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus", diz a Bíblia.3 O que é a sabedoria deste mundo? A agitação do pensamento e o sentido que é definido exclusivamente pelo pensamento.

  • O pensamento isola situações ou acontecimentos e os chama de bons ou maus, como se eles tivessem uma existência separada. Por meio da dependência excessiva do pensamento, a realidade se torna fragmentada. Esse fracionamento é uma ilusão, contudo parece muito real enquanto permanecemos presos a ela. O universo, porém, é um todo indivisível onde todas as coisas estão interconectadas, onde nada existe de modo independente. 

  •  A profunda interligação de todos os eventos e de todas as coisas deixa implícito que os rótulos mentais de "bom" e "mau" são, em última análise, ilusórios. Eles sempre pressupõem uma perspectiva limitada e, assim, são verdadeiros apenas temporariamente e de modo relativo. Isso é ilustrado pela história de um homem sensato que ganha um automóvel caro num sorteio. Sua família e seus amigos ficam muito felizes por ele e chegam para comemorar. 

  •  - Não é ótimo? - diz um deles. - Você tem tanta sorte.

  •  O homem sorri e responde: - Pode ser.

  •  Durante algumas semanas ele se diverte dirigindo o carro. Até que um dia um motorista bêbado provoca uma batida num cruzamento e o homem vai parar no hospital, com vários ferimentos. Ao visitá-lo, a família e os amigos comentam:

  •  - Isso foi realmente uma infelicidade.

  •  De novo o homem sorri e diz:

  •  - Pode ser. 

  •  Enquanto ele ainda está no hospital, certa noite ocorre um deslizamento de terra e sua casa é tragada pelo mar. Mais uma vez, os amigos aparecem no dia seguinte e observam: 

  •  - Não foi mesmo uma sorte você ter ficado aqui no hospital?

  •  Novamente ele responde:

  •  - Pode ser. 

  •  O "pode ser" desse personagem sábio significa uma recusa em julgar tudo o que acontece. Em vez de avaliar os eventos, ele os aceita e, dessa maneira, entra em alinhamento consciente com a ordem superior. Esse homem sabe que quase sempre é impossível para a mente entender que lugar ou propósito um acontecimento que parece aleatório ocupa no trançado da totalidade. No entanto, não há eventos casuais, assim como nem as coisas nem os fatos existem por e para si mesmos de modo isolado. Os átomos que constituem nosso corpo foram forjados nas estrelas, enquanto as causas do menor dos eventos são virtualmente infinitas e ligadas ao todo de maneiras incompreensíveis. Se quiséssemos encontrar o motivo de um acontecimento, teríamos que percorrer o caminho de volta até o começo da criação. O cosmo não é caótico. A própria palavra "cosmo" significa ordem. Mas essa não é uma ordem que a mente humana possa chegar a entender, embora consiga ter um vislumbre dela.

O caos e o propósito superior

  • Quando nos conhecemos apenas por meio do conteúdo, também pensamos que sabemos o que é bom ou ruim para nós mesmos. Discriminamos os acontecimentos entre os que são "bons para nós" e aqueles que são "maus". Essa é uma percepção fragmentada da unicidade da vida na qual tudo está interligado, em que cada acontecimento tem seu lugar e sua função dentro da totalidade. Contudo, a totalidade é mais do que a aparência superficial das coisas, mais do que a soma total das suas partes, mais do que qualquer coisa que nossa vida e o mundo contêm.

  •  Por trás da sucessão de acontecimentos algumas vezes aparentemente aleatórios ou até mesmo caóticos da nossa vida, assim como do mundo, acontece de maneira oculta o desenrolar de uma ordem e de um propósito superiores. Há um ditado zen que expressa isso de forma maravilhosa: "A neve cai, cada floco no lugar adequado." Nunca seremos capazes de compreender essa ordem superior pensando nela porque tudo o que pensamos é conteúdo. No entanto, ela emana da dimensão sem forma da consciência, da inteligência universal. Ainda assim, podemos vislumbrá-la. Mais do que isso, somos capazes de ficar alinhados com ela, ou seja, de atuarmos como participantes conscientes do desenvolvimento desse propósito superior. 

  •  Quando vamos a uma floresta que não sofreu interferência do homem, nossa mente pensante vê apenas desordem e caos ao nosso redor. Ela não é capaz nem mesmo de diferenciar o que é vida (bom) do que é morte (mau), uma vez que, por toda parte, a nova vida cresce a partir da matéria putrefata e em decomposição. Apenas se nos mantivermos silenciosos o bastante internamente e o ruído do pensamento ceder, é que poderemos tomar consciência de que existe uma harmonia oculta ali, uma sacralidade, uma ordem superior em que tudo tem seu lugar perfeito e não poderia ser outra coisa a não ser o que é da maneira como é. 

  •  A mente sente-se mais à vontade num parque paisagístico porque foi planejada pelo pensamento, ela não cresceu organicamente. Nesse parque existe uma ordem que a mente é capaz de entender. Na floresta, há uma ordem incompreensível que, para ela, se parece com o caos. Está além das categorias mentais de bom e mau. Não conseguimos apreendê-la por meio do pensamento. No entanto, podemos senti-la quando o deixamos de lado, ficamos silenciosos e atentos e não tentamos entender nem explicar. Só então estamos aptos a tomar consciência da sacralidade da floresta. Tão logo sentimos essa harmonia oculta, constatamos que não estamos separados dela e, nesse momento, nos tornamos um participante consciente dessa sacralidade. Dessa maneira, a natureza pode nos ajudar a retomar o alinhamento com a unicidade da vida.