sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O silêncio


  • Costuma-se dizer: "O silêncio é a linguagem de Deus, e tudo mais é tradução malfeita." O silêncio é realmente outra palavra para espaço. Ao tomarmos consciência dele quando o encontramos na nossa vida, estabelecemos uma ligação com a dimensão sem forma e eterna dentro de nós, aquela que está além do pensamento e do ego. Pode ser o silêncio que envolve o mundo da natureza, a tranqüilidade do nosso quarto nas primeiras horas da manhã ou os intervalos entre os sons. O silêncio não tem forma - é por isso que, por meio do pensamento, não conseguimos ter consciência dele. O pensamento é forma. Ter consciência do silêncio significa ficar em silêncio. Ficar em silêncio é estar consciente sem pensamento. Nunca somos nós mesmos com tanta intensidade do que quando estamos em silêncio. Nessas ocasiões, somos quem fomos antes de assumir temporariamente essa forma física e mental que chamamos de pessoa. Também somos aquele que seremos depois que a forma se dissolver. Quando estamos em silêncio, somos quem somos além da nossa existência temporal: a consciência - incondicional, sem forma, eterna.

Perder-se para encontrar-se


  • O espaço interior surge também sempre que deixamos de lado a necessidade de enfatizar nossa identificação com a forma. Isso é algo requerido pelo ego. Não é uma carência genuína. Já abordei brevemente esse ponto. Toda vez que abrimos mão de um padrão de comportamento que leva a isso, criamos o espaço interior. Reforçamos quem nós somos de verdade. Para o ego, é como se estivéssemos nos perdendo de nós mesmos, porém ocorre o oposto. Jesus nos ensinou que precisamos nos perder para nos encontrar. Quando abandonamos um desses padrões, atenuamos o destaque de quem somos no nível da forma. Assim, quem somos além da forma emerge de maneira mais plena. Como nos tornamos menos, podemos ser mais.

  •  Vou mencionar alguns comportamentos que as pessoas adotam inconscientemente para fortalecer sua identidade com a forma. Se você estiver alerta o bastante, será capaz de detectar alguns deles dentro de si mesmo: exigir reconhecimento por alguma coisa que fez e indignar-se ou aborrecer-se quando não o consegue; tentar obter atenção falando sobre problemas pessoais, contando a história da própria doença ou fazendo uma cena; dar uma opinião quando ninguém a pede e ela não faz diferença para a situação; ser mais preocupado com o modo como é visto pelas pessoas do que com elas, isto é, usá-las como um reflexo do ego ou como um instrumento para realçar o ego; tentar causar impressão nos outros por meio de bens, conhecimentos, boa aparência, posição social, força física, etc; inflar temporariamente o ego adotando uma reação irada contra alguma coisa ou alguém; levar tudo para o lado pessoal e sentir-se ofendido; considerar-se certo e os outros errados por meio de queixas fóteis, mentais ou verbais; querer ser visto ou parecer importante.

  •  Caso você detecte um desses padrões em si mesmo, sugiro que faça uma experiência. Descubra como se sente e o que ocorre se o abandonar. Simplesmente descarte-o e veja o que acontece. 

  • Enfraquecer quem você é no nível da forma é outra maneira de gerar a consciência. Encontre o imenso poder que flui de você para o mundo deixando de fortalecer sua identificação com a forma.

Percebendo as lacunas


  • Ao longo do dia, vemos e ouvimos uma sucessão de coisas em contínua mutação. No primeiro momento, quando vemos algo ou ouvimos um som - sobretudo se não estamos familiarizados com eles -, antes que a mente os nomeie ou interprete, costuma surgir uma lacuna de atenção alerta na qual ocorre a percepção. Essa lacuna é o espaço interior. Sua duração difere de pessoa para pessoa. É fácil perdê-la porque, no caso de muita gente, ela é extremamente curta, talvez de apenas um segundo ou menos. Veja o que acontece: no primeiro momento da percepção de uma nova imagem ou de um novo som, há uma breve suspensão do fluxo habitual de pensamento. A consciência é desviada do pensamento porque ela é requerida para sentir a percepção. Uma imagem ou um som muito incomuns podem nos deixar "sem palavras" - até mesmo internamente, ou seja, eles produzem uma lacuna mais longa.

  •  A freqüência e a duração desses espaços determinam nossa capacidade de desfrutar a vida, de sentir uma ligação interior com as pessoas e também com a natureza. Elas estabelecem ainda nosso grau de libertação do ego, pois este implica a inconsciência total da dimensão do espaço.

  •  Quando nos tornamos conscientes desses breves intervalos que acontecem naturalmente, eles começam a se tornar mais longos. À medida que isso ocorre, vamos vivenciando com uma freqüência crescente a alegria de perceber as coisas com pouca ou nenhuma interferência do pensamento. O mundo ao nosso redor então parece revigorado, novo e vivo. Quanto mais percebemos a vida por intermédio de uma tela mental de abstração e conceituação, mais desanimado e monótono se torna o ambiente em torno de nós.

Espaço interior e exterior


  • Nosso corpo interior não é sólido, mas amplo. Ele não é nossa forma física, e sim a vida que a anima. É a inteligência que criou o corpo e o mantém, coordenando ao mesmo tempo centenas de funções diferentes de complexidade tão extraordinária que a mente só consegue compreender uma fração disso. Quando nos tornamos conscientes dele, o que de fato acontece é que a inteligência está se tornando consciente de si mesma.

  •  Os físicos descobriram que a aparente solidez da matéria é uma ilusão criada pelos sentidos. Isso inclui o corpo físico. Nós o percebemos e pensamos sobre ele como uma forma, entretanto 99,99% dele é, na verdade, espaço vazio. Essa é a vastidão do espaço que existe entre os átomos em comparação com seu tamanho. E há também muito espaço dentro de cada átomo. O corpo físico não passa de uma percepção distorcida de quem nós somos. Em diversos aspectos, ele é uma versão microscópica do espaço exterior. Para obter uma idéia da extensão do espaço entre os corpos celestiais, considere o seguinte: viajando a 300 mil quilômetros por segundo, a luz leva pouco mais de um segundo para percorrer a distância entre a Terra e a Lua. A luz do Sol alcança nosso planeta em cerca de oito minutos. A luz de Próxima Centauri, a estrela que está mais perto do Sol e a segunda mais próxima a nós depois dele, viaja por 4,5 anos até chegar à Terra. Essa é a amplidão do espaço que nos rodeia. E também há o espaço intergaláctico, cuja dimensão desafia toda a compreensão. A luz de Andrômeda, a galáxia mais próxima a nós, atinge nosso planeta em 2,4 milhões de anos. Não é incrível que nosso corpo seja exatamente tão vasto quanto o universo?

  •  Assim, o corpo físico, que é forma, revela-se essencialmente sem forma quando mergulhamos fundo nele. Torna-se uma passagem para o espaço interior. Embora o espaço interior seja informe, ele é pleno de vida. Aquele "espaço vazio" é a vida na sua totalidade, a Origem não manifestada da qual fluem todas as manifestações. A palavra usual para designar a Origem é Deus.

  •  Os pensamentos e as palavras pertencem ao mundo da forma; eles não podem expressar a ausência dela. Assim, quando dizemos "Estou conseguindo sentir meu corpo interior", essa é uma falsa percepção criada pelo pensamento. O que ocorre de verdade é que a consciência que aparece como o corpo - a consciência que Eu Sou - está se tornando consciente de si mesma. No momento em que deixamos de confundir quem nós somos com uma forma temporária de "eu", a dimensão do eterno e infinito - Deus - pode se expressar por nosso intermédio e nos guiar. Ela também nos liberta da dependência em relação à forma. No entanto, um reconhecimento apenas intelectual, ou a crença "Não sou esta forma", é inútil. A pergunta fundamental é: sou capaz sentir a presença do espaço interior neste momento? Na realidade, seu sentido é: consigo sentir minha própria presença, a presença que Eu Sou? 

  •  Podemos ainda abordar essa verdade usando um indicador diferente, como a seguinte pergunta: "Tenho consciência não só do que está acontecendo neste momento como também do Agora propriamente dito como o espaço interior eterno em que tudo acontece?" Embora essa indagação pareça não ter nada a ver com o corpo interior, podemos nos surpreender com o fato de que, ao nos tornarmos conscientes do espaço do Agora, de repente nos sentiremos mais vivos por dentro. Estaremos percebendo a energia vital do corpo interior - e ela é uma parte intrínseca da alegria do Ser. Temos que entrar no corpo para ir além dele e descobrir que não somos aquilo.

  •  Sempre que possível, use a consciência do corpo interior para produzir espaço. Durante uma espera, quando estiver ouvindo alguém ou nas ocasiões em que fizer uma pausa para apreciar o céu, uma árvore, uma flor, seus fdhos, seu marido ou sua mulher, sinta a vida dentro de si ao mesmo tempo. Isso significa que parte da sua atenção ou consciência permanece sem forma, enquanto o resto está disponível para o mundo exterior das formas. Toda vez que você "habitar" seu corpo dessa maneira, ele servirá como uma âncora para mantê-lo presente no Agora. Isso o impedirá de se perder no pensamento, nas emoções e nas situações externas. 

  •  Quando pensamos, sentimos, percebemos e vivemos uma experiência, a consciência adquire uma forma. É a reencarnação - num pensamento, num sentimento, num sentido de percepção, numa experiência. O ciclo de renascimentos de que os budistas esperam finalmente se libertar acontece de modo contínuo, e é apenas neste momento - por meio do poder do Agora - que conseguiremos sair dele. Pela total aceitação da forma do Agora, alcançamos um alinhamento interno com o espaço, que é a essência do Agora. Por meio da aceitação, criamos uma vastidão interior. Procuramos nos unificar com o espaço, e não com a forma: é isso o que leva a verdadeira perspectiva e o equilíbrio à nossa vida.

A percepção do corpo interior


  • Outra maneira simples mas eficaz de encontrarmos espaço na nossa vida está intimamente ligada à respiração. Você descobrirá que, enquanto sente o fluxo sutil do ar entrar no seu corpo e sair dele, assim como o movimento de subida e descida do tórax e do abdômen, também está ficando ciente do seu corpo interior. Sua atenção pode então se transferir da respiração para essa sensação de energia vital que está disseminada dentro do seu corpo.

  •  As pessoas, em sua maioria, estão tão distraídas pelos pensamentos, tão identificadas com a voz dentro da sua cabeça, que não conseguem mais perceber a energia vital em seu interior. Ser incapaz de sentir a vida que anima o corpo físico, a própria vida que nós somos, é a maior privação que alguém pode sofrer. Assim, elas começam a buscar não apenas substitutos desse estado natural de bem-estar interno como também algo que encubra o permanente desconsolo que sentem por não estarem em contato com essa energia vital, que permanece presente, embora costume ser desconsiderada. Alguns dos substitutos mais procurados são as emoções fortes induzidas pelas drogas, a superestimulação sensorial (como a música em alto volume), distrações eletrizantes ou perigosas e a obsessão pelo sexo. Até mesmo os conflitos nos relacionamentos são colocados no lugar dessa sensação genuína de energia vital. O recurso mais visado para suprir o contínuo desalento subjacente são os relacionamentos íntimos: um homem ou uma mulher que "faça a pessoa feliz". Isso, é claro, está entre as mais freqüentes de todas as "decepções". E, quando o desconsolo volta à tona, o parceiro ou parceira é sempre responsabilizado/a por isso.

  •  Respire conscientemente duas ou três vezes. Agora veja se consegue detectar uma sensação sutil da energia vital que permeia todo o seu corpo interior. Você é capaz de, digamos, sentir seu corpo de dentro para fora? Procure ter uma breve sensação de partes específicas - as mãos, depois os braços, os pés e as pernas. Pode sentir o abdômen, o peito, a nuca e a cabeça? E quanto aos lábios? Há vida neles? Em seguida, tome consciência mais uma vez do corpo interior como um todo. A princípio, talvez você queira praticar esse exercício de olhos fechados. No entanto, depois de sentir seu corpo, abra os olhos e observe ao redor enquanto continua a senti-lo. Algumas pessoas podem achar que não há necessidade de fechar os olhos. Na verdade, talvez elas até consigam sentir o corpo interior enquanto lêem este texto.

Vícios


  • Um padrão de comportamento compulsivo de longa duração pode ser chamado de vício, e um vício vive dentro de nós como uma quase-identidade ou subpersonalidade - um campo energético que periodicamente assume total controle sobre nós. Ele chega de fato a dominar nossa mente, a voz na nossa cabeça, que, assim, se torna a voz do vício. Pode dizer-nos algo como: "Você teve um dia duro. Merece um agrado. Por que se negar o único prazer que lhe resta na vida?" E, assim, se nos identificarmos com a voz interior por causa da falta de consciência, nos veremos caminhando para a geladeira e pegando uma bela torta de chocolate. Em outras ocasiões, o vício pode superar completamente nossos pensamentos e, de repente, talvez estejamos fumando um cigarro ou segurando um copo de bebida. "Como é que isso veio parar na minha mão?" Tirar o cigarro do maço e acendê-lo ou servir-se de uma bebida foram atos executados em total inconsciência. 

  •  Se você tem um padrão de comportamento compulsivo, como fumar, comer em excesso, beber, ver televisão, ficar muitas horas conectado à internet ou qualquer outra coisa do gênero, pense em fazer o seguinte: quando observar a necessidade compulsiva despontar dentro de si, pare e respire conscientemente três vezes. Isso desperta a consciência. Então, por alguns minutos, tome consciência dessa ansiedade como um campo energético no seu interior. Sinta de modo consciente essa necessidade física ou mental que o leva a querer ingerir algo, consumir determinada substância ou adotar uma forma de comportamento compulsivo. Em seguida, respire conscientemente mais algumas vezes. Depois, poderá descobrir que a urgência compulsiva desapareceu - pelo menos dessa vez. Ou que ela ainda o domina, e tudo o que lhe resta é agir sob seu comando de novo. Nesse caso, porém, não faça disso um problema. Torne o vício parte da sua prática de consciência, seguindo as instruções que acabei de fornecer. A medida que a consciência for aumentando, os padrões de dependência começarão a se enfraquecer e acabarão por se dissipar. Lembre-se, contudo, de estar atento a todos os pensamentos que justificam o comportamento exigido pelo vício, algumas vezes com argumentos inteligentes. Pergunte-se: "Quem está dizendo isto?" E perceberá que é o vício. Uma vez que você saiba disso, que esteja presente como o observador da sua mente, serão menores as probabilidades de que ele o engane para que atenda sua vontade.

A respiração


  • Podemos descobrir o espaço interior criando lacunas no fluxo do pensamento. Sem elas, o pensamento se torna repetitivo, desprovido de inspiração, sem nenhuma centelha criativa - e é assim que ele é para a maioria das pessoas. Não precisamos nos preocupar com a duração dessas lacunas. Alguns segundos bastam. Aos poucos, elas irão aumentar por si mesmas, sem nenhum esforço da nossa parte. Mais importante do que fazer com que sejam longas é criá-las com freqüência para que nossas atividades diárias e nosso fluxo de pensamento sejam entremeados por espaços.

  •  Certa ocasião alguém me mostrou a programação anual de uma grande organização espiritual. Quando a examinei, fiquei impressionado pela rica seleção de seminários e palestras interessantes. A pessoa me perguntou se eu poderia recomendar uma ou duas atividades. "Não sei, não. Todos elas me parecem muito interessantes. Mas eu conheço esta: tome consciência da sua respiração sempre que puder, toda vez que se lembrar. Faça isso durante um ano e terá uma experiência transformadora bem mais forte do que a participação em qualquer uma dessas atividades. E é de graça." 

  •  Tomar consciência da respiração faz com que a atenção se afaste do pensamento e produz espaço. É uma maneira de gerar consciência. Embora a plenitude da consciência já esteja presente como o não-manifestado, estamos aqui para levar a consciência a essa dimensão. 

  •  Tome consciência da sua respiração. Observe a sensação do ato de respirar. Sinta o movimento de entrada e saída do ar ocorrendo em seu corpo. Veja como o peito e o abdômen se expandem e se contraem ligeiramente quando você inspira e expira. Basta uma respiração consciente para produzir espaço onde antes havia a sucessão ininterrupta de pensamentos. Uma respiração consciente (duas ou três seria ainda melhor) feita muitas vezes ao dia é uma maneira excelente de criar espaços na sua vida. Mesmo que você medite sobre sua respiração por duas horas ou mais, o que é uma prática adotada por algumas pessoas, uma respiração basta para deixá-lo consciente. O resto são lembranças ou expectativas, isto é, pensamentos. Na verdade, respirar não é algo que façamos, mas algo que testemunhamos. A respiração acontece por si mesma. Ela é produzida pela inteligência inerente ao corpo. Portanto, basta observá-la. Essa atividade não envolve nem tensão nem esforço. Além disso, note a breve suspensão do fôlego - sobretudo no ponto de parada no fim da expiração - antes de começar a inspirar de novo. 

  •  Muitas pessoas tem a respiração curta, o que não é natural. Quanto mais tomamos consciência da respiração, mais sua profundidade se restabelece sozinha. 

  •  Como a respiração não tem forma própria, ela tem sido equiparada ao espírito - a Vida sem uma forma específica - desde tempos ancestrais. "O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida; e o homem se tornou um ser vivente."5 A palavra alemã para respiração - atmen - tem origem no termo sánscrito Atman, que significa o espírito divino que nos habita, ou o Deus interior. 

  •  O fato de a respiração não ter forma é uma das razões pelas quais a consciência da respiração é uma maneira muito eficaz de criar espaços na nossa vida, de produzir consciência. Ela é um excelente objeto de meditação justamente porque não é um objeto, não tem contorno nem forma. O outro motivo é que a respiração é um dos mais sutis e aparentemente insignificantes fenômenos, a "menor coisa", que, segundo Nietzsche, constitui a "melhor felicidade". Cabe a você decidir se vai ou não praticar a consciência da respiração como uma verdadeira meditação formal. No entanto, a meditação formal não substitui o empenho em criar a consciência do espaço na sua vida cotidiana. 

  •  Ao tomarmos consciência da respiração, nos vemos forçados a nos concentrar no momento presente - o segredo de toda a transformação interior, espiritual. Sempre que nos tornamos conscientes da respiração, estamos absolutamente no presente. Percebemos também que não conseguimos pensar e nos manter conscientes da respiração ao mesmo tempo. A respiração consciente suspende a atividade mental. No entanto, longe de estarmos em transe ou semidespertos, permanecemos acordados e alerta. Não ficamos abaixo do nível do pensamento, e sim acima dele. E, se observarmos com mais atenção, veremos que essas duas coisas - nosso pleno estado de presença e a interrupção do pensamento sem a perda da consciência - são, na verdade, a mesma coisa: o surgimento da consciência do espaço.

Quem é o sujeito da experiência?


  • O que vemos, escutamos, provamos pelo paladar, tocamos e cheiramos são, evidentemente, objetos dos sentidos. Eles são aquilo que experimentamos. Mas quem é o sujeito, aquele que vivência a experiência? Se dissermos, por exemplo, "E claro que eu, João da Silva, contador, 45 anos de idade, divorciado, pai de dois filhos, brasileiro, sou o sujeito, aquele que vivência a experiência", estamos enganados. João da Silva e todos os elementos identificados com o conceito mental dessa pessoa são todos objetos da experiência, e não o sujeito que a está vivenciando. 

  •  Toda experiência possui três ingredientes possíveis: percepção dos sentidos, pensamentos ou imagens mentais e emoções. João da Silva, contador, 45 anos de idade, divorciado, pai de dois filhos, brasileiro - esses são todos pensamentos e, portanto, fazem parte do que nós sentimos no momento que os temos. Eles e qualquer outra coisa que possamos dizer e pensar sobre nós são objetos, e não o sujeito. São a experiência, e não aquele que vivência a experiência. Podemos acrescentar mais umas mil definições (pensamentos) sobre quem nós somos e, ao fazermos isso, certamente aumentaremos a complexidade da experiência de nós mesmos. No entanto, dessa maneira, não chegaremos ao sujeito, que é anterior a toda experiência, mas sem o qual elas não existiriam. 

  •  Então quem é aquele que vivência a experiência? Somos nós. E quem somos nós? Consciência. E o que é consciência? Essa pergunta não pode ser respondida. No momento em que a respondermos, vamos falsificá-la, transformá-la em outro objeto. A consciência, termo tradicional para aquilo que é espírito, não pode ser conhecida no sentido comum dessa palavra, e tentar persegui-la é bobagem. Todo conhecimento se encontra no âmbito da dualidade - sujeito e objeto, o conhecedor e o conhecido. O sujeito, o eu, o conhecedor sem o qual nada seria conhecido, percebido, pensado ou sentido, deve permanecer para sempre incognoscível. Isso porque o eu não tem forma. Apenas as formas podem ser conhecidas. E, ainda assim, sem a dimensão sem forma, o mundo das formas não poderia existir. Esse é o espaço iluminado no qual o mundo surge e desaparece. Ele é a vida que Eu Sou. É eterno. Eu Sou eterno, perpétuo. O que acontece nesse espaço é relativo e temporário: prazer e dor, ganho e perda, nascimento e morte. 

  •  O maior impedimento à descoberta do espaço interior, a principal barreira à descoberta daquele que tem a experiência, é nos tornarmos tão subjugados pela experiência que acabemos perdidos nela. Isso significa que a consciência está desorientada em seu próprio sonho. Somos arrebatados por todo pensamento, toda emoção e toda sensação a tal ponto que, na verdade, nos encontramos num estado de sonambulismo. Essa tem sido a situação normal da humanidade por milhares de anos

  • . Embora não possamos conhecer a consciência, somos capazes de nos tornar conscientes dela como nós mesmos. Temos como senti-la diretamente em qualquer situação, não importa onde estejamos. Podemos senti-la aqui e agora como nossa verdadeira presença, o espaço interior em que as palavras nesta página são percebidas e se transformam em pensamentos. Ela é o Eu Sou subjacente. Por exemplo, as palavras que você está lendo e nas quais está pensando são o primeiro plano, enquanto o Eu Sou é o substrato, o pano de fundo implícito em cada sensação, pensamento e sentimento.

Perceber sem nomear


  • As pessoas, em sua maioria, estão apenas superficialmente conscientes do mundo que as cerca, sobretudo quando estão familiarizadas com o ambiente em que se encontram. A voz na cabeça absorve a maior parte da sua atenção. Há quem se sinta mais vivo quando viaja e visita lugares desconhecidos ou outros países porque, nessas ocasiões, a percepção sensorial ocupa mais a sua consciência do que o pensamento. Esses indivíduos se tornam mais presentes. Outros permanecem sob o total domínio da voz na cabeça até mesmo nessas situações. Suas percepções e sensações são distorcidas por julgamentos instantâneos. Na verdade, eles não chegaram a ir a lugar nenhum. Apenas seu corpo está viajando, enquanto elas permanecem onde sempre estiveram: na própria cabeça.

  •  Essa é a realidade da maior parte das pessoas: tão logo alguma coisa é percebida, ela é nomeada, interpretada, comparada com outra coisa qualquer, apreciada, detestada ou chamada de boa ou má pelo eu-fantasma, o ego. Elas estão aprisionadas nas formas de pensamento, na consciência do objeto. 

  •  Ninguém desperta espiritualmente enquanto não interrompe o processo compulsivo e inconsciente de nomear ou, pelo menos, até que tome consciência dele e assim seja capaz de observá-lo enquanto ocorre. É por meio desse nomear constante que o ego permanece em atividade como a mente não observada. Sempre que ele pára e até mesmo quando apenas nos tornamos conscientes dele, há lugar para o espaço interior e então deixamos de ser possuídos pela mente. 

  •  Agora, escolha um objeto próximo a você - uma caneta, uma cadeira, uma xícara, uma planta - e examine-o visualmente, ou seja, olhe para ele com grande interesse, quase com curiosidade. Evite itens com fortes associações pessoais que o façam se lembrar do passado, como onde você os comprou, de quem os ganhou, etc. Deixe de lado também tudo o que tenha algo escrito, como um livro ou uma garrafa. Isso pode estimular o pensamento. Sem fazer esforço, relaxado mas alerta, dedique total atenção ao objeto, a cada detalhe dele. Se surgirem pensamentos, não se envolva com eles. Não é neles que você está interessado, e sim no ato da percepção em si. Você consegue retirar o pensamento de dentro da percepção? É capaz de observar sem que a voz na sua cabeça faça comentários, tire conclusões, compare ou tente descobrir alguma coisa? Depois de uns dois minutos, deixe seu olhar vagar pelo ambiente, com sua atenção alerta iluminando cada coisa sobre a qual ela pousar. 

  •  Depois, ouça os sons que possam estar presentes. Faça isso da mesma maneira como olhou para as coisas ao seu redor. Talvez alguns sons sejam naturais - água, vento, pássaros -, enquanto outros serão artificiais. Alguns podem ser agradáveis, outros desagradáveis. No entanto, não faça diferença entre bons e maus. Deixe cada som ser como ele é, não o interprete. Nesse caso também, o segredo é a atenção relaxada, porém alerta. 

  •  No momento em que olhar e escutar dessa maneira, você poderá se tornar consciente de um sentimento sutil de calma, que, a princípio, talvez seja difícil de perceber. Algumas pessoas o sentem como um silêncio em segundo plano. Outras preferem chamá-lo de paz. Quando a consciência não está mais totalmente absorvida pelo pensamento, uma parte dela permanece no seu estado original, não condicionado, sem forma. Esse é o espaço interior.

A ação correta


  • O ego pergunta: "Com posso fazer com que esta situação satisfaça minhas necessidades ou como posso chegar a outra situação que venha atender minhas necessidades?"

  •  A presença é um estado de grande amplitude interna. Quando estamos presentes, perguntamos: "Como devo responder às necessidades desta situação, deste momento?" Na verdade, nem sequer precisamos fazer essa pergunta. Estamos em silêncio, atentos, abertos ao que é. Trazemos uma nova dimensão à situação: espaço. Então observamos e escutamos. Assim nos tornamos um com a situação. Sempre que, em vez de reagirmos a uma circunstância, nos fundimos a ela, a solução surge da própria circunstância. Na verdade, não somos nós, a pessoa, que estamos olhando e escutando, mas o silêncio alerta em si. Então, se a ação é possível ou necessária, a executamos ou, mais exatamente, a ação correta acontece por nosso intermédio. A ação correta é aquela que é adequada para o todo. Quando ela é consumada, o silêncio alerta e amplo permanece. Ninguém levanta os braços num gesto de triunfo gritando um desafiador "É isso aí!" nem dizendo "Olhem, eu consegui". 

  • Toda criatividade surge da amplitude interior. Depois que a criação acontece e alguma coisa toma forma, precisamos ficar vigilantes para que as noções de "eu" e "meu" não apareçam. Se nos atribuirmos o crédito pelo que conseguimos fazer, é porque o ego está de volta e o amplo espaço tornou-se obscurecido.

Você consegue ouvir o córrego na montanha?


  • Um mestre zen estava caminhando em silêncio com um dos seus discípulos por uma trilha na montanha. Quando chegaram a um velho pé de cedro, eles se sentaram embaixo dessa árvore e fizeram uma refeição simples, com apenas de um pouco de arroz e hortaliças. Após a refeição, o discípulo, um jovem monge que ainda não descobrira a chave para o mistério do zen, rompeu o silêncio perguntando ao mestre:

  •  - Mestre, como faço para entrar no zen?

  •  Ele estava, é claro, perguntando como entrar no estado de consciência que é conhecido como zen. 

  • O mestre permaneceu em silêncio. O discípulo esperou ansiosamente por uma resposta por quase cinco minutos. Ele estava prestes a fazer outra pergunta quando o mestre falou de repente:

  •  - Está ouvindo o som daquele córrego na montanha? 
  •  O discípulo não tinha notado nenhum córrego na montanha. Estivera mais preocupado em pensar sobre o significado do zen. Agora, enquanto começava a escutar o som, sua mente ruidosa se acalmou. A princípio ele não ouviu nada. Depois, seu pensamento deu lugar a um estado de alerta mais intenso e, de repente, ele ouviu o murmúrio quase imperceptível de um córrego a longa distância.

  • - Sim, consigo ouvir agora - confirmou.

  •  O mestre ergueu um dedo e, com um olhar que de alguma maneira era ao mesmo tempo feroz e gentil, complementou:

  •  - Entre no zen por aí. 

  •  O discípulo ficou perplexo. Era seu primeiro satori - um lampejo de iluminação. Ele sabia o que o zen era sem saber o que era aquilo que ele sabia!

  •  Eles prosseguiram na sua jornada em silêncio. O discípulo estava impressionado com a manifestação da vida no mundo à sua volta. Sentia tudo como se fosse pela primeira vez. Pouco a pouco, porém, começou a pensar de novo. O silêncio alerta voltou a ser encoberto pelo ruído mental, e não demorou muito tempo para que ele fizesse outra pergunta.

  •  - Mestre, estive pensando. O que o senhor teria dito se eu não tivesse sido capaz de ouvir o córrego? O mestre parou, olhou para ele, ergueu o dedo e disse:

  •  - Entre no zen por aí.

Reconhecendo o espaço interior


  • É provável que o espaço entre os pensamentos já esteja surgindo de vez em quando na nossa vida e talvez nem estejamos cientes disso. Uma consciência que é fortemente atraída pelas experiências e condicionada a se identificar apenas com a forma, isto é, a consciência dos objetos, considera, a princípio, quase impossível perceber o espaço. Em última análise, isso quer dizer que não conseguimos nos tornar conscientes de nós mesmos porque estamos sempre conscientes de outra coisa qualquer. Permanecemos distraídos pela forma de modo permanente. Até mesmo quando parecemos estar conscientes de nós mesmos, acabamos nos transformando num objeto, numa forma de pensamento. Assim, aquilo de que temos consciência não corresponde a nós, é apenas um pensamento. 

  •  Quando ouvimos falar de espaço interior, pode ser que comecemos a buscá-lo. No entanto, se fizermos isso como se estivéssemos procurando um objeto ou uma experiência, não teremos sucesso. Esse é o dilema de todos aqueles que estão tentando alcançar a compreensão espiritual, ou iluminação. Por isso, Jesus disse: "O Reino de Deus não virá de um modo ostensivo. Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está dentro de vós."3 

  •  Se não gastamos todo o nosso tempo com descontentamento, preocupação, ansiedade, depressão, desespero nem nos deixamos consumir por outros estados negativos; se temos a capacidade de desfrutar as coisas simples, como ouvir o som da chuva ou do vento; se conseguimos ver a beleza das nuvens passando pelo céu; se temos condições de ficar sozinhos de tempos em tempos sem nos sentir solitários nem carentes do estímulo mental de um entretenimento; se somos capazes de nos ver tratando um estranho com uma bondade sincera sem esperar nada em troca, isso significa que se abriu um espaço - não importa que seja curto - no fluxo incessante de pensamentos que é a mente humana. Quando isso acontece, experimentamos uma sensação de bem-estar, de paz viva, ainda que sutil. A intensidade pode variar de um sentimento quase imperceptível de contentamento em segundo plano ao que os antigos sábios da índia chamavam de ananda - a alegria do Ser. Como fomos condicionados a prestar atenção apenas na forma, provavelmente não temos consciência dela, a não ser de modo indireto. Por exemplo, existe um elemento comum na capacidade de vermos a beleza, de valorizarmos as coisas simples, de gostarmos de ficar sozinhos e de nos relacionarmos com as pessoas com benevolência. Esse elemento comum é um sentimento de contentamento, de paz e de vivacidade que é o pano de fundo invisível sem o qual essas experiências não seriam possíveis. 

  • Sempre que você detectar a beleza, a amabilidade, o reconhecimento do que existe de bom nas coisas simples da sua vida, procure pelo pano de fundo de tudo isso dentro de si mesmo. Mas não busque esse segundo plano como se estivesse tentando encontrar alguma coisa. Você não conseguirá identificá- lo com precisão e dizer: "Agora eu o tenho." Também não poderá prendê-lo com a mente e defini-lo de algum jeito. Ele é como o céu sem nuvens. Não tem forma. É espaço - é silêncio, a doçura do Ser e infinitamente mais do que estas palavras, que podem apenas sugerir o que ele é. Quando você for capaz de senti-lo diretamente em seu interior, ele se aprofundará. Então, toda vez que você valorizar algo simples - um som, uma imagem, um toque - nos momentos em que vir a beleza e sempre que tiver um sentimento de benevolência em relação ao outro, sentirá a amplitude interior que é a fonte e o pano de fundo dessas vivências.

  •  Ao longo dos séculos, muitos poetas e sábios observaram que a verdadeira felicidade - eu a chamo de alegria do Ser - é encontrada nas coisas simples, aparentemente comuns. A maioria das pessoas, na sua busca incansável por algo importante que possa acontecer na sua vida, costuma não prestar atenção no que é insignificante, que pode não ser insignificante de maneira nenhuma. O filósofo Nietzsche, num raro momento de silêncio profundo, escreveu: "Como é preciso pouco para a felicidade! (...) a menor coisa, precisamente a mais suave, a mais leve, o farfalhar de um lagarto, um sopro, um psiu, um olhar de relance - é o pouco que faz a melhor felicidade. Silêncio!"4

  •  Por que "a menor coisa" faz a "melhor felicidade"? Porque a verdadeira felicidade não é causada nem pela coisa nem pelo acontecimento, embora seja assim que pareça a princípio. Ambos são tão sutis, tão pouco perceptíveis, que ocupam apenas uma pequena parte da nossa consciência - o resto é espaço interior, a consciência propriamente dita não obstruída pela forma. A consciência do espaço interior e quem nós somos em nossa essência são a mesma e uma só coisa. Em outras palavras, a forma das pequenas coisas deixa lugar para o espaço interior. E dele, que é a própria consciência não condicionada, emana a verdadeira felicidade, a alegria do Ser. Para estarmos conscientes daquilo que é pequeno e suave, precisamos, porém, permanecer silenciosos em nosso interior. Isso requer um alto grau de atenção. Aquiete-se. Olhe. Ouça. Esteja presente. 

  •  Esta é outra maneira de encontrar o espaço interior: torne-se consciente de estar consciente. Diga ou pense "Eu Sou" e não acrescente mais nada. Tome consciência do silêncio que acompanha o Eu Sou. Sinta sua presença, que é o puro estado de ser despojado de qualquer coisa, despido, revelado. Não há nada que a afete - nem a juventude nem a velhice, nem a riqueza nem a pobreza, nem a bondade nem a maldade, nem quaisquer outros atributos. Ela é o amplo útero de toda criação, de todas as formas.

A televisão


  • Ver televisão é a atividade de lazer favorita (ou melhor, a opção de inatividade) de milhões de pessoas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, quem está na faixa dos 60 anos de idade já terá passado 15 anos diante da tela da TV. Em muitos outros países, os índices são semelhantes. 

  •  Para um número significativo de pessoas, ver televisão é algo "relaxante". Observe a si mesmo e verá que, quanto mais tempo sua atenção permanece tomada pela tela, mais sua atividade intelectual se mantém suspensa. Assim, por longos períodos você estará assistindo a atrações como programas de entrevistas, jogos, shows de variedades, quadros de humor e até mesmo a anúncios sem que quase nenhum pensamento seja gerado pela sua mente. Você não apenas deixa de se lembrar dos seus problemas como se torna livre de si mesmo por um tempo - e o que poderia ser mais relaxante do que isso? 

  •  Então ver televisão cria o espaço interior? Será que isso nos faz entrar no estado de presença? Infelizmente, não é o que acontece. Embora a mente possa ficar sem produzir nenhum pensamento por um bom tempo, ela permanece ligada à atividade do pensamento do programa que está sendo exibido. Mantém-se associada à versão televisiva da mente coletiva e segue absorvendo seus pensamentos. Sua inatividade é apenas no sentido de que ela não está gerando pensamentos. No entanto, continua assimilando os pensamentos e as imagens que chegam à tela. Isso induz um estado passivo semelhante ao transe, que aumenta a suscetibilidade, e não é diferente da hipnose. E por isso que a televisão se presta à manipulação da "opinião pública", como é do conhecimento de políticos, de grupos que defendem interesses específicos e de anunciantes - eles gastam fortunas para nos prender no estado de inconsciência receptiva. Querem que seus pensamentos se tornem nossos pensamentos e, em geral, conseguem.

  •  Portanto, quando estamos vendo televisão, nossa tendência é cair abaixo do nível do pensamento, e não nos posicionarmos acima dele. A TV tem isso em comum com o álcool e com determinadas drogas. Embora ela nos proporcione um pouco de alívio em relação à mente, mais uma vez pagamos um preço alto: a perda da consciência. Assim como as drogas, essa distração tem uma grande capacidade de viciar. Procuramos o controle remoto para mudar de canal e, em vez disso, nos vemos percorrendo todas as emissoras. Meia hora ou uma hora mais tarde, ainda estamos ali, passeando pelos canais. O botão de desligar é o único que nosso dedo parece incapaz de apertar. Continuamos olhando para a tela. Porém, normalmente não porque algo significativo tenha chamado nossa atenção, e sim porque não há nada interessante sendo transmitido. Depois que somos fisgados, quanto mais trivial e mais sem sentido é a atração, mais intenso se torna nosso vício. Se isso fosse estimulante para o pensamento, motivaria nossa mente a pensar por si mesma de novo, o que é algo mais consciente e, portanto, preferível a um transe induzido pela televisão. Dessa forma, nossa atenção deixaria de ser prisioneira das imagens da tela. 

  •  O conteúdo da programação, caso apresente alguma qualidade, pode até certo ponto neutralizar, e algumas vezes até mesmo desfazer, o efeito hipnótico e entorpecedor da TV. Existem determinados programas que são de uma utilidade extrema para muitas pessoas - mudam sua vida para melhor, abrem seu coração, fazem com que se tornem mais conscientes. Há também algumas atrações humorísticas que acabam sendo espirituais, mesmo que não tenham essa intenção, por mostrarem uma versão caricata da insensatez humana e do ego. Elas nos ensinam a não levar nada muito a sério, a permitir um pouco mais de descontração e leveza na nossa vida. E, acima de tudo, nos ensinam isso enquanto nos fazem rir. O riso tem uma extraordinária capacidade de liberar e curar. Contudo, a maior parte do que é exibido na televisão ainda está nas mãos de pessoas que são totalmente dominadas pelo ego. Assim, a intenção oculta da TV é nos controlar nos colocando para dormir, isto é, deixando-nos inconscientes. Mesmo assim, existe um potencial enorme e ainda inexplorado nesse meio de comunicação. 

  •  Evite assistir a programas e anúncios que o agridam com uma rápida sucessão de imagens que mudam a cada dois ou três segundos ou menos. O hábito de assistir à televisão em excesso e essas atrações em particular são duas causas importantes do transtorno de déficit de atenção, um distúrbio mental que vem afetando milhões de crianças em todo o mundo. A atenção deficiente, de curta duração, torna todos os nossos relacionamentos e percepções superficiais e insatisfatórios. Qualquer coisa que façamos nesse estado, qualquer ação que executemos, carece de qualidade, pois a qualidade requer atenção

  • . O hábito de ver televisão com freqüência e por longos períodos não só nos deixa inconscientes como induz a passividade e drena toda a nossa energia. Portanto, em vez de assistir à TV ao acaso, escolha os programas que despertam seu interesse. Enquanto estiver diante dela, procure sentir a vívida atividade dentro do seu corpo - faça isso toda vez que se lembrar. De vez em quando, tome consciência da sua respiração. Desvie os olhos da tela em intervalos regulares, pois isso evitará que ela se aposse completamente do seu sentido visual. Não ajuste o volume acima do necessário para que a televisão não o domine no nível auditivo. Tire o som durante os intervalos. Procure não dormir logo após desligar o aparelho ou, ainda pior, adormecer com ele ligado.

Abaixo e acima do nível do pensamento


  • Quando estamos muito cansados, podemos nos sentir mais em paz, mais relaxados, do que no estado normal. Isso acontece porque os pensamentos diminuem e, assim, não nos lembramos mais do nosso eu problemático criado pela mente. Estamos próximos ao estado do sono. A ingestão de álcool ou de determinadas drogas (desde que elas não estimulem o corpo de dor) também pode nos deixar menos tensos, mais despreocupados e até mais animados por um tempo. Às vezes, começamos a cantar e dançar, ações que, desde as épocas ancestrais, expressam a alegria de viver. Como estamos menos sobrecarregados pela mente, podemos ter um vislumbre da alegria do Ser. Talvez por isso o álcool seja chamado também de spirit ("espírito") na língua inglesa. Mas existe um alto preço a pagar: a inconsciência. Em vez de nos posicionarmos acima do nível do pensamento, caímos abaixo dele. Algumas doses a mais de bebida e teremos regressado ao reino vegetal. 

  •  A consciência do espaço tem muito pouco a ver com o estado de desorientação. Ambos estão além do nível do pensamento. Isso eles têm em comum. A diferença fundamental, contudo, é que, no primeiro caso, nos colocamos acima do nível do pensamento; no segundo, ficamos abaixo dele. Um é o próximo passo na evolução da consciência humana, o outro uma regressão a um estágio que superamos eras atrás.

A consciência dos objetos e a consciência do espaço


  • A vida da maioria das pessoas é um amontoado desordenado de coisas: itens materiais, tarefas a fazer, questões sobre as quais pensar. Esse tipo de vida se assemelha à história da humanidade, que Winston Churchill definiu como "uma maldita coisa depois da outra". A mente dessas pessoas é ocupada por um emaranhado de pensamentos, um após o outro. Essa é a dimensão da consciência dos objetos, que é a realidade predominante de um grande número de indivíduos - e é por causa disso que a vida deles é tão confusa. Essa consciência precisa ser equilibrada pela consciência do espaço para que a sanidade retorne ao nosso planeta e a humanidade cumpra seu destino. O surgimento da consciência do espaço é o próximo estágio da evolução da nossa espécie. 

  •  O sentido da consciência do espaço é que, além de estarmos conscientes das coisas - que sempre se resumem a percepções, pensamentos e emoções -, existe um estado subjacente de atenção. Isso quer dizer que temos consciência não apenas das coisas (objetos) como também do fato de que estamos conscientes. Ê o que ocorre quando somos capazes de sentir um silêncio interior sempre alerta ao fundo enquanto os eventos acontecem no primeiro plano. Essa dimensão está presente em todos nós. No entanto, para a maioria das pessoas, ela passa totalmente despercebida. Às vezes, eu a aponto da seguinte maneira: "Você é capaz de sentir sua própria presença?"

  •  A consciência do espaço representa a liberdade tanto em relação ao ego quanto à dependência das coisas, do materialismo e da materialidade. Ela é a dimensão espiritual que, sozinha, pode dar um significado verdadeiro e transcendente a este mundo.

  •  Sempre que estamos aborrecidos com algo que ocorreu, com alguém ou com uma situação, a verdadeira causa desse estado de ânimo não é o que aconteceu, nem a pessoa, nem a circunstância, mas a perda da verdadeira perspectiva que apenas o espaço pode oferecer. Estamos presos à consciência dos objetos, inconscientes do espaço interior atemporal da consciência propriamente dita. A frase "Isto também passará", quando usada como um indicador, pode restaurar a consciência dessa dimensão para nós. 

  •  Outro indicador da verdade em nós está na seguinte afirmação: "Meu aborrecimento nunca é causado por aquilo que imagino."2

A descoberta do espaço interior


  • Segundo uma antiga história sufista, havia um rei num território do Oriente Médio que estava sempre dividido entre a felicidade e o desalento. A menor coisa era capaz de lhe causar grande aborrecimento ou uma reação intensa, e assim sua felicidade se convertia rapidamente em frustração e desespero. Por fim, houve um momento em que ele se cansou de si mesmo e da vida e começou a buscar uma saída. Mandou chamar um sábio que vivia no reino e que tinha a fama de ser iluminado. Quando o sábio chegou, o rei lhe disse:

  •  - Quero ser como você. Pode me dar alguma coisa que traga equilíbrio, serenidade e sabedoria à minha vida? Pago o preço que você pedir por isso.

  •  O sábio respondeu: - Talvez eu possa ajudá-lo. Mas o preço é tão alto que nem todo o seu reino seria suficiente para pagá-lo. Então, vou lhe dar isso como um presente, desde que você honre o compromisso. 

  •  O rei lhe garantiu que sim e o sábio se foi.

  •  Algumas semanas depois, ele retornou e entregou ao rei uma caixa decorada e com entalhes de jade. O rei a abriu e encontrou ali um simples anel de ouro. Havia algumas letras gravadas nele. A inscrição dizia: "Isto também passará."

  •  - O que significa isto? - perguntou o rei. 
  • O sábio respondeu:
  •  - Use sempre este anel. Seja o que for que aconteça, antes de considerar esse evento bom ou mau, toque o anel e leia a inscrição. Assim, você viverá sempre em paz.

  •  "Isto também passará" - o que essas palavras simples têm que as torna tão poderosas? Numa consideração superficial, a impressão é de que elas são capazes de dar algum conforto numa situação difícil, mas que também podem diminuir o prazer das boas coisas da vida. "Não seja feliz demais porque não vai durar." Isso parece ser o que elas estão dizendo quando aplicadas a uma circunstância tida como positiva.

  •  Toda a importância dessa frase se torna clara quando a consideramos no contexto de duas outras histórias que mencionei anteriormente. A do mestre zen, cuja única resposta era "É mesmo?", mostra o bem proporcionado pela não-resistência interior aos acontecimentos, ou seja, por estarmos unificados com o que acontece. A história do homem cujo comentário era sempre "Talvez" ilustra a sabedoria do não-julgamento, enquanto a do anel destaca a transitoriedade que, quando reconhecida, leva ao desapego. Não-resistência, não-julgamento e desapego são os três aspectos da verdadeira liberdade e de uma vida iluminada.

  •  As palavras inscritas no anel não dizem que não devemos aproveitar as coisas boas da vida nem visam apenas proporcionar conforto em momentos de dor. Sua finalidade principal é nos tornar conscientes de que as situações são sempre efêmeras, o que se deve à transitoriedade de todas as formas - boas ou más. Quando reconhecemos isso, nosso apego diminui e praticamente deixamos de nos identificar com as formas. O desapego não nos impede de desfrutar as coisas boas que o mundo tem a oferecer. Na verdade, passamos a usufruí-las muito mais. Depois que compreendemos e aceitamos a impermanencia de tudo o que existe e a inevitabilidade da mudança, conseguimos aproveitar os prazeres enquanto eles duram, mas agora livres do medo da perda e da ansiedade quanto ao futuro. Com o desapego desenvolvemos um ponto de vista privilegiado que nos permite observar os acontecimentos em vez de ficarmos presos dentro deles. E como se nos tornássemos um astronauta que vê a Terra cercada pela vastidão do espaço e compreende uma verdade paradoxal: nosso planeta é precioso e ao mesmo tempo insignificante. O reconhecimento de que "Isto também passará" produz esse distanciamento e, com ele, nossa vida ganha mais uma dimensão - o espaço interior. Por meio do desapego, assim como do não-julgamento e da não-resistência interior, obtemos acesso a essa dimensão.

  •  Quando não estamos mais totalmente identificados com as formas, a consciência - quem nós somos - se vê livre do seu aprisionamento na forma. Essa liberdade é o surgimento do espaço interior. Ele chega como um estado de silêncio e calma, uma paz sutil enraizada dentro de nós, mesmo diante de algo que parece mau - "Isto também passará". De repente existe espaço em torno do acontecimento. Há também espaço ao redor dos altos e baixos emocionais, até mesmo da dor. E, acima de tudo, existe espaço entre nossos pensamentos. E, desse espaço, emana uma paz que não é "deste mundo", porque este mundo é forma, enquanto a paz é espaço. Essa é a paz de Deus.

  •  Agora podemos desfrutar e estimar as coisas e os eventos sem lhes atribuir uma importância que eles não possuem. Temos condições de participar da dança da criação e sermos ativos sem nos apegarmos ao resultado e sem impormos exigências pouco razoáveis em relação ao mundo, como satisfaça-me, faça-me feliz, faça-me sentir seguro, diga-me quem sou. O mundo não pode nos dar nada disso e, quando deixamos de ter essas expectativas, todo o sofrimento que nós mesmos criamos chega ao fim. Toda essa dor se deve à valorização exagerada da forma e à falta de consciência quanto à dimensão do espaço interior. Quando essa dimensão está presente na nossa vida, podemos aproveitar as coisas, as experiências e os prazeres sensoriais sem nos perdermos neles, sem nos apegarmos internamente a nada disso, isto é, sem nos tornarmos viciados no mundo.

  •  A mensagem "Isto também passará" é um instrumento de orientação em relação à realidade. Ao indicar a transitoriedade de todas as formas, ela também aponta implicitamente para o eterno. Apenas o eterno dentro de nós reconhece o efêmero como efêmero.

  •  Sempre que a dimensão do espaço se perde ou não é conhecida, as coisas assumem uma importância absoluta, uma seriedade e um peso que, na verdade, elas não possuem. Toda vez que o mundo não é visto da perspectiva do que não tem forma, ele se torna um lugar ameaçador e, em última análise, de desespero. O profeta do Antigo Testamento sentiu isso quando escreveu: "Todas as coisas se afadigam, e mais do que se pode dizer."1